José Ricardo 26/05/2013
Os meus "Cem anos de solidão"
Impossível traduzir com palavras os dias em que estive em Macondo. Creio que nunca, em minha vida, a literatura foi tão usada para transpor-me a uma realidade absurdamente diferente desta onde eu existo. Gabo pegou-me pela mão e a mim mostrou as sete gerações dos Buendía, como um narrador bíblico que coloca diante dos nossos olhos infantes um mundo onde tudo é possível. Um mundo não ainda contaminado pelas ideias de Descartes — e os que vieram antes e depois dele —, que puseram ordem e razão em nossas mais lindas criancices. E foi assim que me senti: criança. Dessas que aceitam o tudo o que lhe contam, sem que este tudo tenha que ser provado, mensurado, atestado, mas apenas vivido.
A primeira vez que tentei ler “Cem anos de solidão” fora na adolescência. Devia ter uns 16 ou 17 anos, era um leitor afoito, desses que deixam de lado o estudo acadêmico da gramática, dos números, das datas, dos mapas e dos organismos vivos para devanear horas e horas pelo mundo da leitura. Achei o livro difícil, pesado mesmo, principalmente por causa dos muitos Arcadios e Aurelianos que já apareciam logo nas primeiras páginas. Mal sabia eu que as Amarantas, as Remedios e até mesmo as Úrsulas também se repetiriam pelas laudas afora, de maneira cíclica e labiríntica. Mas ouvindo uma voz interna que me isentava do fardo de ser um leitor precoce, eu simplesmente deixei o livro para depois.
E o depois se fez agora, no momento em que decidi mergulhar na Literatura latino-americana e provar de todos os seus sabores. É claro que Gabriel García Márquez figura nesta categoria no rol qualquer leitor, até mesmo dos mais desavisados. Eu já tinha lido o Gabo através de uns contos esparsos, muitos entre os “Doze contos peregrinos”. Mas sentir os cheiros de Macondo e ouvir seus sussurros foi realmente uma experiência única e indizível.
O livro realmente nos arrasta. Coloca-nos personagens, ao lado de outros tantos. Suga-nos de um modo abrupto e nos seduz, de tal maneira que somos nós que pedimos para sermos enganados pelo realismo mágico do autor. Mágico! Creio que a mágica bem define o tema de “Cem anos de solidão”. É a magia das palavras. Aquelas palavras escritas em pergaminhos, com códigos (quase) indecifráveis... Aquelas palavras destinadas aos médicos invisíveis, aos mortos que nos assombram, aos amores inconfessáveis, aos silêncios com os quais nos punimos.
Durante este tempo, eu fui um Buendía e descobri que eles têm um pouco de todos nós, humanos. Que são nossos ancestrais comuns... E imaginei que ao morrer um Buendía, sempre nasceria outro, com os mesmos repetidos nomes e os mesmos repetidos fados. Mas para meu grande susto, a última verdade assentada na última página dizia o contrário, pois tudo o que estava escrito nos pergaminhos de Melquíades “era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra”.
ALGUNS TRECHOS QUE ME EMBEVECERAM:
"... 'Já que ninguém quer ir embora, nós iremos sozinhos.' Úrsula não se alterou.
— Nós não iremos — disse. — Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho.
— Ainda não temos um morto — ele disse. — A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.
— Se é preciso que eu morra para vocês ficarem aqui, eu morro."
***
"A casa se encheu de amor. Aureliano expressou-o em versos que não tinham princípio nem fim. Escrevia-os nos ásperos pergaminhos que lhe dava Melquíades, nas paredes do banheiro, na pele dos seus braços, e em todos aparecia Remedios transfigurada: Remedios no ar soporífero das duas da tarde, Remedios na calada respiração das rosas, Remedios na clepsidra secreta das mariposas, Remedios no vapor do pão ao amanhecer, Remedios em todas as partes e Remedios para sempre."
***
“—Porra! — gritou.
Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
— Onde está — perguntou alarmada.
— O quê?
— O animal! — esclareceu Amaranta.
Úrsula pôs o dedo no coração.
— Aqui — disse.”