Luiz Felipe 11/09/2015
Fantástico (em todas as acepções possíveis do termo)
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.”
Com essas palavras, tem início Cem Anos de Solidão, um dos livros mais fantásticos já escritos, em todas as acepções do termo. O termo fantástico possui sentidos diversos. Pode significar tanto algo sobrenatural, surreal, como algo incrível, espetacular. No caso do livro “Cem Anos de Solidão”, ambos os significados são válidos.
Ele nos leva ao vilarejo de Macondo, fundado por José Arcádio Buendía e Úrsula Iguaran, que, embora primos, acabam se casando. O livro nos guia, geração por geração, pelos filhos, netos e bisnetos do casal, criando um universo fantástico e único.
A história do vilarejo e da família Buendía é permeada por causos e acontecimentos surreais e fantásticos. O arsenal de “causos” apresentados no livro inclui: pessoas que levitam; um homem que, ao caminhar, é seguido sempre por um enxame de borboletas; uma epidemia de perda de memória; mortos que aparecem e conversam com os vivos; chuvas que duram anos e anos e anos; um personagem que morre absolutamente do nada; uma mulher que decide se trancar em casa e no entanto permanece viva por anos e anos;
A quantidade de metáforas e coisas geniais presentes no livro é tanta que eu gastaria dezenas de parágrafos enumerando todas. Tentarei fazer um resumo do que mais gostei. Para começar, o livro faz uma analogia com a história da América Latina. No início, Macondo é um vilarejo pobre, pouco desenvolvido, e constantemente recebe a presença de ciganos que sempre trazem alguma “novidade”. Uma dessas novidades, por exemplo, é o gelo (a famosa passagem de José Arcádio Buendía levando seu filho Aureliano para conhecer o gelo é citada várias e várias vezes durante o livro). Com o tempo, o vilarejo vai se desenvolvendo, chegam mais pessoas para morar no local, acontecem algumas guerras, uma indústria se instala, etc. Pessoas de vários lugares do mundo se instalam lá e assumem o controle do local, “tomando” o vilarejo da população nativa.
A política também é algo extremamente presente no livro. Vemos o vilarejo se dividir em dois partidos (o partido conservador e o partido liberal). Assim como no mundo real, os conservadores são tradicionalistas, religiosos, primam pela ordem, pela moral e bons costumes, enquanto os liberais são rebeldes, contra a igreja e contra o autoritarismo. A questão do autoritarismo, por sinal, é muito bem explorada pelo autor. Ela é encarnada no personagem Arcádio, por exemplo (não confundir com José Arcádio ou José Arcádio Buendía, pois são três personagens diferentes – a repetição de nomes é constante na família).
A história da família Buendía é, sobretudo, uma história de ciclos e repetições. Vemos não só nomes se repetirem, mas também acontecimentos relacionados a esses nomes. Notamos que quando o nome se repete, a personalidade também costuma se repetir. Aureliano’s são sempre tímidos, reflexivos e estudiosos. José Arcádio’s são sempre impulsivos. A própria expressão “Muitos anos depois”, que abre o livro, repete-se várias e várias vezes durante a narrativa. O final do livro também parece estar conectado ao início, num ciclo sem fim.
A solidão é o fio que liga todos os personagens dessa família. Todos os personagens acabam, de uma forma ou de outra, experimentando a solidão. E nenhum personagem é esquecido. Todos possuem um desfecho.
Ao final, o que fica é uma história que permanece em nossa mente por semanas após ter terminado a leitura – Cem Anos de Solidão pertence ao rol de livros dos quais é impossível sair intacto da experiência de se lê-los.