Leonardo.H.Lopes 10/01/2021Livros que mudam leitores: Cem Anos de SolidãoMuitos anos depois, diante da imensa pilha de livros a ler, a lombada de Cem Anos de Solidão haveria de me lembrar aquela tarde remota em que o li pela primeira vez. Faz alguns anos e, tomado pelo espanto que tive com ele na época e pela importância que esse livro teve em mim por, pela primeira vez, me mostrar o que realmente é possível se fazer com palavras no que tange a um patamar supremo da riqueza de um tipo de arte, decidi reler. Já fui a Macondo, portanto, duas vezes: aos 15 anos e agora, aos 22. Está tudo lá, intacto. Sempre hei de me lembrar a primeira vez que o avistei numa prateleira da biblioteca da escola, na segunda feira após o domingo em que deu no telejornal a morte de Gabriel García Márquez - Gabo, para os mais íntimos de seus textos. Ouvi por cima que esse era um livro revolucionário, que tinha sido decisivo para que seu criador tivesse sido laureado com o Nobel de Literatura em 1982. Na época, empolgado com o início de uma jornada pelos livros, já cheguei decisivo e me encaminhei direito para a prateleira dos M, atrás de MARQUEZ, Gabriel G. Após passar alguns, achei o bendito livro que tinha saído no jornal, tão comentado em face do falecimento de quem o concebeu. Era esse tal de Cem Anos de Solidão. O que eu esperava dele? Não sabia, o exemplar não continha orelhas, onde geralmente tem comentários e breves comentários sobre a obra e atrás continha apenas um trecho ao invés da sinopse. Caí de cara e o mergulho que dei foi tão profundo que se tornou um divisor de águas no meu eu leitor.
Em poucas palavras, e de um modo que de forma alguma pretende alcançar a real dimensão e extensão do enredo, esse livro se trata de uma narrativa real, mas fantástica, e episódica que nos conta a saga do povoado Macondo e de uma família, os Buendía por 7 geração e aproximadamente um século inteiro. Vemos a espetacular ascensão e o trágico declínio desses personagens, incluindo a aldeia que começou com “vinte casas de pau a pique e telhados de sapé, construídas na beira de um rio de águas diáfanas, que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como óvos pré-históricos.” A vida cotidiana é marcada por acontecimentos fantásticos de uma forma mitológica em que os eventos extraordinários são completamente críveis, parte daquela imaginação e vivência da realidade. Gabo trabalha em cima do gênero de forma tão ímpar que esse fica conhecido posteriormente como um tipo de literatura essencialmente latinoamericana, coisa que não é inteiramente verdade, embora seja verdadeira a sentença que que dita que aqui esse gênero alcançou um novo patamar nesse livro, responsável até por trazer os holofotes do mundo literário para a América Latina como um todo.
Em consequência, temos a poesia e casa oração utilizada. Quando um dos personagens morre de forma misteriosa por um tiro, escorre de seu ouvido um fio de sangue que passa por debaixo da porta atravessa a rua e todos os obstáculos e entra numa casa até a mãe que, já sabendo o que ocorreu segue de volta o fio de sangue até encontrar o filho caído envolto num cheiro de pólvora que persiste nas proximidades do cemitério até muitos anos depois do sepultamento. E numa outra passagem que, após um massacre que remonta um acontecimento real durante uma greve na Colômbia nos anos 1940, chove por exatos quatro anos, onze meses e dois dias, o que nos alude ao dilúvio Bíblico em que, estando a humanidade tão perdida, Deus acaba por começar de novo. Uma das Buendía, já para o meio das gerações, era tão bela que não era deste mundo, e não o era mesmo, fato que fica comprovado quando, literalmente, ascende aos céus quando um dos mais importantes falece, chove pétalas de flores a ponto de tornar a saída de casa impossível. Todos esses acontecimentos, e os muitos outros, transbordam poesia e simbologia, demonstram a genialidade e sensibilidade por trás da mão que os escreveu. Ademais, à medida que a história avança temos a destruição desses mitos pela modernização dessas gerações e eventos que retomam o cenário de extrema violência que se instaurou na América Latina nos idos da metade para cá do século XX, demonstrando assim uma politização da técnica que torna esse livro interessante para todos, tanto para ampliar horizontes dos novos leitores ou propiciar outras perspectivas para leitores de longa data.
Nessa segunda aventura pela obra, depois de amadurecido, o que mais me chamou a atenção foi a questão do tempo. Podemos estabelecer uma linha cronológica de acontecimentos, mas que se torna confusa, intencionalmente, pelas idas e vindas do narrador, pelas digressões e intercalações de tempos verbais que, quando está sendo escrito algo no presente também é recuperado algo do passado e antecipado algo que ainda vai acontecer. Esse estilo já fica claro de cara, na primeira frase do romance: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”: o narrador no presente fala dos sentimentos de um passado remotos situação que ainda vai acontecer, mas que já aconteceu, trabalhando também a questão da memória/esquecimento (aliás, essa cena do fuzilamento e da memória do gelo vai ser retomada várias vezes ao longo do texto). Além disso e de questão de estilo, essa técnica faz com que passado, presente e futuro se misturem e virem um amálgama só, intensificando a concepção de circularidade temporal que o autor estabelece, a lei do eterno retorno de Nietzsche. Os nomes dos personagens se repetem através das gerações, assim como as características, as sinas e o ar melancólico e de solidão mesmo. Todas as pessoas dentro do texto têm um fim triste, solitário, que evidencia que apesar de fazermos coisas diferentes, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais, ao ritmo da canção de Belchior.
Dessa vez, quando fechei a quarta capa do livro, o abracei e chorei uma lágrima, que não sei ser de satisfação pela catarse ou de tristeza pelo fim, mas tive cuidado para que essa lágrima solitária não caísse na capa e a manchasse. Chorei não porque o livro seja triste ou emocionante, o que de fato ele o é, mas porque nas últimas linhas me reconectei com o momento em que estava lendo o livro no passado e a grandeza da história como um todo me levaram a uma verdadeira catarse que não acontecia há muito tempo. Já li, não que isso seja algo que realmente importe, mais de 250 livros até hoje, mas nenhum será igual a Cem Anos de Solidão que, entre todos, merecem várias outras chances de ser relido por mim sobre a terra.