Daniel911 06/06/2023
A solidão de um pingo no meio do oceano
Desconforta-me escrever sobre este livro, assim como é uma dor arrancar uma parte de mim, uma opinião, e lançar no infinito oceano indescritível e impenetrável do Outro, vendo-a ir virando outras coisas de outros caráteres tão estranhos a cada onda levando mais distante de onde saiu, de tão longe de mim já não consigo nem reconhecer mais qualquer traço propriamente meu naquilo. Se é que já pude dizer que aquilo já teve qualquer traço propriamente meu, mesmo quando ainda dentro de mim, eu sendo esse invólucro por onde transitam ideias que se abraçam, se destroem, convivem, ficam, vão embora e nunca jamais cessam o tumulto de preencher heterogeneamente essa forma fluida que chamam de personalidade. Esse livro é pra mim a demonstração do ego humano reconhecendo a própria existência, um simbólico olhar no espelho e perceber a própria imagem pela primeira vez.
É desconfortável, pois, falar sobre as facetas de Hesse de maneira impessoal tanto quanto é amedrontador levar para o pessoal. O passeio pela história da formação do seu ego, e das facetas de si mesmo interagindo entre si em conflito, estranheza, aceitação, ensino, libido ou qualquer outra interação possível dentro do universo que é uma psique cobra que se leia em comparação com a própria formação por questão natural de compaixão, não demora-se a compreender as correntes invisíveis que desde criança Sinclair se vê puxado em direções opostas, todos passamos pela apreensão de um mundo contraditório, então ver o desenvolvimento psicológico de um qualquer perdido sem norte definido na vida ressoa com o mal primordial da consciência, a solidão.
Em solitude encontramos no passatempo de divagar sobre as verdades o prazer de descobrir e questionar as contradições, encontramos sem querer, perguntando a mesma pergunta várias vezes, aqueles que respondem respostas satisfatórias, que dão boas comichões em forma de mais perguntas e mais respostas. Nesse momento, sem querer, já estamos notando a torrente que é uma personalidade, o se conhecer que vai de encontro com as normas morais de máximas inquestionáveis imperativas, máximas confortáveis, mas estáticas, impróprias para o prazer de degustar contradições e provar personalidades diferentes.
Desconforta de maneira geral ouvir alguém discorrer tão efusivamente sobre si, é intolerável aprender seja o que for sobre algo tão desinteressante quanto o Outro, portanto só ouvimos dele o que assemelha-se em grau ao Eu e nessa troca sempre mediada por um jogo de poderes dois ou mais se atravessam e se transitam até não haver muita diferença visível entre Eus e Outros, eles fluem como o oceano e como oceano são inconstantes. Ouvir sobre o Outro é intolerável, até que olha-se para dentro e vê em si que não há distinção entre os dois, há nele o que há em mim e vice-versa, é uma dor que não sabe onde dói, muito menos se é mesmo para doer tanto.
Me é desconfortável falar sobre o que há nesse livro pois, mesmo em código, ele me lembra demais dessas ondas e do que vem e o do que vai, do que aparentemente é meu, do que aparentemente é do outro, do que provavelmente é nosso e do que com certeza nunca pertenceu unicamente a ninguém. Cada pessoa não é só si mesma, é um ponto entre inúmeros pontos, passados, presentes ou futuros, onde passam indescritíveis volumes vitais a cada segundo, tudo que se pode experienciar em uma minúscula vida, todos os "[...] fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais" e com essa responsabilidade colossal de simplesmente obedecer o livre-arbítrio consciente de que o livre-arbítrio é a ferramenta de um determinismo inescapável inerente do existir. Esse livro é desconfortável de se comentar pois a lembrança dele é como tentar conter e falhar em traduzir uma irredutível totalidade interna em uma razão de ser.