Sharon 05/04/2012O livro começa parecendo um romance de formação. A narradora, adolescente em 1937, vive na Manchúria, que se proclama "independente" da China, mas, na verdade, é um território controlado pelo Japão. Sua vida é escola, amigas, rapazes, a família e o go. Jogar, para ela, é uma alegria, uma fuga, um alívio dos problemas.
Mas um segundo narrador aparece rapidinho trazendo um pouco de romance histórico. É um oficial japonês enviado à China para auxiliar na invasão. Gostei bastante das passagens em que ele pensa (tão sério, tão solene, tão japonês!) sobre a vida de soldado e também sobre as relações entre eles e as prostitutas:
"Não é possível reconciliar a pátria e a família. Um soldado é aquele que assassina a felicidade dos seus. Se a minha existência foi útil, a nação o deve à abnegação de uma mulher." p. 37
"Preparei-me para morrer. Por que me casar? Uma esposa de samurai se mata após o desaparecimento de seu esposo. Por que precipitar uma outra vida no abismo? Gosto muito das crianças, continuidade de uma raça, esperança de uma nação. Mas sou incapaz de fazê-las. Os pequenos têm necessidade de crescer sob a tutela de um pai, ao abrigo do luto.
As mulheres da vida têm um frescor furtivo, parecido ao orvalho da manhã. Desiludidas, são almas gêmeas dos militares. A insipidez de seus sentimentos tranquiliza nossos corações selvagens. Saídas da miséria, elas têm medo da felicidade. Condenadas, não ousam sonhar com a eternidade. Apegam-se a nós como náufragos aos pedaços de madeira flutuantes. Há em nosso abraços uma pureza religiosa." p. 53
Mas conhecer uma certa jogadora de go traz um pouquinho de ironia para suas reflexões:
"Sentado num canto diante da sala vazia, um olho no vaivém dos garçons, faço o rascunho de uma carta par minha mãe.
Enumero-lhe os objetos de que tenho necessidade: sabões, guardanapos, jornais, livros, bolos de feijão vermelho. Os anos passados na escola de cadetes fizeram de mim um homem. O distanciamento da pátria me transforma numa criança mimada. Exijo esta ou aquela marca de produto, detalho sua cor, seu perfume. Refaço vinte vezes minha lista, e a fúria da nostalgia acaba por se acalmar." p. 111
Seus caminhos se cruzaram na praça dos Mil Ventos, local onde os jogadores da cidade se encontram. Ele vai até lá disfarçado de pequinês e se encanta pelos modos livres da mulher chinesa, se comparados às japonesas que conhecia:
"Entre nós, quando as mulheres riem escondem o rosto atrás da manga de seu quimono. A chinesa sorri sem cerimônia nem artifício. Sua boa se abre como uma granada que explode.
Desvio os olhos." p. 98
É divertida a narração da mesma cena pela jogadora, e mostra a segurança dela, um não-sei-quê assim de Liz Bennet:
"Anoto a posição dos peões numa folha de papel e gratifico o Desconhecido com um sorriso. Por já tê-lo testado no Primo Lu, em Min e em Jing, conheço minha arma.
De fato, ele abaixa a cabeça."
Enquanto jogam sua partida interminável, a história vai se tornando mais sombria e rápida, e eu paro de anotar páginas interessantes no marcador. A guerra enfurece, os exércitos combatem a cada dia com mais crueldade. Oposicionistas são perseguidos e torturados, os pobres morrem, se não pela violência, de fome e frio. Nossa heroína (ainda não sabemos seu nome) atravessa dilemas, tragédias e decepções. A fuga proporcionada pelo jogo querido já não é suficiente... e não há ajuda. Somos conduzidos pela angústia dela como cachorrinhos.
Li muito rápido, em duas horas e meia. O ritmo foi imposto por mim e não pela autora, que escreve de forma deliciosa, narrando as paisagens e personagens com metáforas chinesas muito bonitas. Mas eu simplesmente precisava saber. Não chegou a me decepcionar, mas... apesar de bonito e fazer sentido em um romance sonhador como esse, é incoerente, inverossímil. Destruiu aquela minha sensação de "realmente poderia ter acontecido". Pena.
Para ver outras capas do livro: www.quitandinha.blogspot.com