Michelle Alves 28/05/2017UTOPIA: UMA JORNADANa série de ficção científica denominada Ciclo de Hainish ou Ecumênico, a autora americana Ursula Le Guin explora a ideia de que a sociedade humana se expande através da galáxia em um futuro distante, com livros e contos que exploram os diversos sistemas sociais e políticos, e que discutem sobre as diferenças étnicas, de gênero e o relacionamento dos seres humanos com a natureza.
Todos os povos descendem de Hain – este criou subespécies de seres humanos que foram dispersos em todo o universo – um planeta que apresenta um elevado desenvolvimento tecnológico,. A tecnologia foi usada como meio de colonizar os outros mundos, mantendo assim uma ligação entre eles. Contudo, com o passar do tempo, o contato com as colônias foi perdido e, numa tentativa de reaproximação, criou-se o Conselho Ecumênio. Este último caracteriza-se por ser um consórcio de mundos que se reúnem e tem como objetivo reunir informação sobre outros mundos e civilizações.
Os Despossuídos – primeiro livro na cronologia desse série – , lançado em 1974, é uma distopia que traça um paralelo entre dois mundos habitados por humanos: Anarres, que apresenta uma sociedade anárquica e uma capitalista chamada de Urrás. Abordando temas como sociedades revolucionárias, o isolamento, o egocentrismo, a Teoria da Simultaneidade, a Hipótese de Sapir-Whorf e com pinceladas de feminismo, a história narra a história de um personagem nomeado de Shevek, um físico em Anarres que viaja para trabalhar em Urrás.
“A liberdade é o reconhecer da solidão de cada pessoa que só por si a transcende"
Urrás é um planeta que passou por uma revolução quando um grupo de pessoas se rebelou contra o sistema. Para que não houvesse uma possível guerra, foi aceito que esse grupo fosse transferido para uma de suas luas – Anarres – e assim pudesse criar a sua própria sociedade. Contudo, as relações foram cortadas, e então um muro foi erguido entre essas duas nações. Em uma tentativa de manter relações diplomáticas, Urrás permitiu um cientista estrangeiro (Shevek) viajar e permanecer em seu território com o objetivo de contribuir com o seu conhecimento científico. Esse premiado pesquisador pretende desenvolver um sistema de comunicação sem qualquer intervalo de tempo entre dois pontos no espaço (essa ideia recebe o nome de ansível).
O personagem permeia o tempo todo pela doutrina filosófica científico, demonstrando que a sua principal objeção à essa sociedade é a maneira que os cientistas são tratados: "ser um físico em A-Io não significava servir à sociedade, nem à espécie humana, não à verdade, mas sim ao Estado" (Capítulo 9). E isso nos leva à política em “Os Despossuídos”. Durante a sua estadia, Shevek vai explorando os diversas dilemas daquela sociedade hierarquizada, que, apesar de apresentar avanço tecnológico, vive guerra fria entre duas potências continentais, e ainda não conseguiu superar problemas como, por exemplo, a pobreza.
“Tudo o que a civilização faz é esconder o sangue e encobrir o ódio com belas palavras”
Assim como George Orwell em sua célebre obra “1984”, Ursula parece ser influenciada pelo trabalho dos linguistas americanos Benjamin Whorf e Edward Sapir, que, de acordo com esses linguistas, a linguagem possui o poder de influenciar fortemente a construção do pensamento e na percepção da realidade, moldando assim a visão de mundo do indivíduo. Se na obra orwelliana o idioma criado pelo governo (“novilíngua”) serve para restringir a linguagem para distorcer e eliminar informações reais objetivando manter o controle político e a submissão do povo, aqui a fala é trabalhada em Anarres de forma com que as pessoas aprendam a partilhar e não a “egoizar”, através do não uso do pronome possessivo. Observamos, por exemplo, em trechos que personagens dizem as sentenças “o lenço que eu uso” ao invés de “o meu lenço” e “doía-lhe a mão” e não “a minha mão dói”. Não há possessividade nesse mundo de Shevek, isso nos leva ao entendimento do título do livro: despossuir = desapossar, tirar ou privar da posse, do domínio; despojar; privar; obrigar a largar.
O mais curioso é que essa “novilíngua” de Orwell está sendo comparada ao momento atual do governo Trump recém-empossado dos EUA, evidenciando como as distopias literárias repercutem com o momento político no mundo contemporâneo.
Outro ponto de destaque da obra é a narrativa em capítulos alternados – presente e passado da vida do protagonista – que passa a ideia da teoria da simultaneidade presente na história, onde os vários momentos acontecem de forma simultânea e se influenciam concomitantemente.
A escritora ainda pontua uma crítica ao modo como a mulher é retratada na área da ciência em um dos mundos: tida como incapaz para a área de exatas e um ser não pensante, é subjugada ao seu útero, levando a ficar sem oportunidades profissionais igualitárias ao do indivíduo homem.
Por fim, o livro não é uma apologia ao mundo ideal. Em Anarres – vista pelo protagonista como uma sociedade ideal – a paz e a felicidade não reinam absolutas. O intuito da autora ao final parece ser o de desenvolver o conceito do que é uma utopia. Segundo a ponderação de Ursula K. Le Guin nessa obra, uma sociedade ideal é uma ideia que precisa estar sempre em movimento, que necessita ser sempre discutida, evoluir. Por isso essa ideia não pode ser um ponto final, e sim constituir um horizonte aberto, que deve estar sempre a construir, ou seja, uma jornada.
Eis um pensamento que ilustra a ideia:
Utopia, por Fernando Birri
(apud Eduardo Galeano*)
Eu sei muito bem que nunca a alcançarei,
que se eu caminhar dez passos, ela ficará dez passos mais longe.
Quanto mais eu buscar, menos a encontrarei porque ela vai se afastando à medida que eu me aproximo.
Boa pergunta, não? Para que serve a utopia?
Pois a utopia serve para isso: caminhar.
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*Galeano, Eduardo. Link do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=9iqi1oaKvzs
Ferreira, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
Gonçalves, Rodrigo Tadeu. "Humboldt e o Relativismo Linguístico." Estudos Linguísticos, Campinas 35 (2006): 1700-1709.
Orwell , George. 1984. Companhia das Letras, 2009.