O Século Soviético

O Século Soviético Moshe Lewin




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Nuno 29/12/2021

Um século moldado pela existência de um país que durou menos de cem anos
Moshe Lewin foi um historiador de origem judaica nascido na Lituânia. Quando a Lituânia foi anexada ao território da União Soviética, por ocasião do tratado Ribbentrop-Molotov entre a Alemanha e a URSS, Lewin veio a trabalhar em fazendas coletivas e em siderúrgicas soviéticas. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, combateu nas fileiras do Exército Vermelho e após o conflito emigrou para Israel, juntando-se ao movimento trabalhista sionista e trabalhando em um kibbutz. Mais tarde viria a se doutorar na Sorbonne onde iniciou seus estudos sobre a URSS. Com essa biografia heterodoxa, Lewin viria a fazer parte da historiografia revisionista dos anos 1960 se opondo a chamada escola totalitarista, bastante em voga no auge da Guerra Fria, que via o regime soviético como monolítico associando aos regimes nazi-fascistas. Nesse livro, Lewin, usando vasto material documental e pesquisas diversas, tenta desconstruir verdades absolutas que a escola totalitarista (mas também alguns setores da esquerda) estabeleceu como consenso ao afirmar que o regime soviético era totalitário, que o governo de Stálin foi uma continuidade natural de Lênin, que a revolução de outubro foi um golpe dado por uma facção política sem legitimidade e que o comunismo impediu o rumo inevitável da Rússia a uma democracia-liberal.

Na coleção de ensaios que formam o livro, Lewin relê a experiência soviética a partir da História Social, considerando as dinâmicas sociais e culturais da sociedade soviética, como também as motivações de seus agentes administrativos e do partido. Nessa empreitada, o autor busca complexificar a experiência soviética a luz de documentos oficiais, disponibilizados na década de 90, como também em uma ampla gama de estudos produzidos por pesquisadores na Rússia e no exterior após a queda do regime, sobre os mais variadas questões relativas a vida social e administração do país. Lewin vê dois grandes períodos durante os poucos mais de 70 anos de existência da URSS: O período stalinista e pós-stalinista. Para o autor os dois períodos apresentam características particulares e paradigmas singulares em relação a administração e a vida social e por isso busca analisar separadamente no conjunto de ensaios que formam as três partes do livro, não seguindo assim uma ordem cronológica dos acontecimentos em cada ensaio que constituiu cada parte da obra.

Na primeira parte do livro, Lewin busca demonstrar que a URSS foi, sobretudo, uma criação de Stálin que deu ao novo estado características de sua personalidade, de sua visão de mundo, como também de suas convicções acerca da natureza do estado e do povo russo, características que se diferenciavam substancialmente das de Lênin e de outros bolcheviques. Ao contrário de Lênin, Trotski e Bukharin, Stálin, quando preso pela polícia czarista, não fora exilado fora do país, nem teve o acesso à cultura europeia que seus contemporâneos de partido tiveram, formando sua visão de mundo a partir da realidade russa. Nascido na Geórgia, tendo acesso limitado aos estudos devido a sua origem social humilde (tendo por isso uma formação de forte influência religiosa da Igreja Ortodoxa), Stálin moldou sua visão acerca do estado e do povo russo a partir de sua “psique” combinado com a sua experiência, e a de seu grupo político, na Guerra Civil Russa. Na época da guerra civil, encontrava-se afastado dos centros de poder (Moscou e São Petersburgo) por ter sido nomeado por Lênin como responsável pela questão das nacionalidades, obrigando-o a viajar pelo interior do país constantemente. A resistência de muitos povos, antes submetidos ao Império Russo, de se tornarem parte da nova Rússia, devido à crença bolchevique na necessidade de uma revolução cultural, que transformassem costumes e crenças tradicionais a partir de uma formação educacional europeizada e ateia, levou Stálin a enxergar a necessidade de reabilitação da tradição autocrática do estado russo capaz de restabelecer a ordem e levar a cabo uma modernização rápida e necessária ao país. Para isso, seria necessário não apenas submeter à força as diversas etnias e nacionalidades que compunham o Império Russo, como também combater vozes divergentes dentro do partido bolchevique e na burocracia estatal, nomeando um novo corpo de administradores e renovando os quadros do partido. Para Lewin, Stálin nunca foi um “discípulo” natural de Lênin, mas, ao contrário, seu principal opositor no partido bolchevique no poder. O autor defende sua visão não apenas com o testamento de Lênin, mas a partir de correspondências deste último com outros bolcheviques membros do Politburo e sua indignação frente ao “incidente georgiano”. Nesse incidente, Stálin e Felix Dzerzhinsky (fundador da Cheka) interviram pessoalmente a favor do comitê georgiano quando este estabeleceu a resolução de que a Geórgia não estaria preparada para ter autonomia da Rússia, boicotando a discussão do comitê da República da Transcaucásia (na qual a Geórgia fazia parte junto com a Armênia e o Azerbaidjão) sobre a adesão como estados autônomos a uma união formal com a Rússia ou tonarem-se independentes, mas fazendo parte de uma federação socialista em que a Rússia fosse apenas mais um membro igualitário. Esse acontecimento fez com que Lênin abrisse mão da ideia de um estado socialista unitário, optando por uma federação igualitária entre repúblicas socialistas que compreendessem todas as diferentes nacionalidades. Stálin, temendo a derrota, propôs a criação de uma união entre repúblicas, mas desde que essas seguissem a orientação da União, formada por um governo central, constituído por representantes das repúblicas e do partido e com sede em Moscou. Na prática, isso criou um único poder soviético sem possibilidade real de secessão das nacionalidades. Para Lewin, essa “contra-proposta”, aprovada por Lênin e o partido bolchevique, era o início do novo estado imaginado por Stálin para suceder o Império Russo. Ainda que Lênin inicialmente defendesse a centralização decisória do estado russo, ele, como político experiente e pragmático, moldava suas decisões segundo as circunstâncias políticas e as necessidades impostas pela realidade social e econômica, tendo como melhor exemplo a criação da Nova Política Econômica e o carácter plural (não necessariamente democrático) do partido bolchevique até a sua morte. Já Stálin apenas recuava quando via a possibilidade real de derrota. Seus recuos eram apenas temporários, pois buscava com isso a melhor oportunidade para impor suas ideias num momento mais propício. Lewin ilustra essa característica de Stálin quando ele se afasta do secretariado ao ver seu cargo de secretário-geral ameaçado após a divulgação do testamento de Lênin. Esse afastamento temporário possibilitou Stálin consolidar sua base no partido, angariando apoio de Bukharin, de maneira a impedir uma tentativa futura de tirá-lo do comando por ocasião da união entre Kamenez, Zinoviev e Trotski. O que foi encarado por bolcheviques experientes como fraqueza política de Stálin, demonstrou-se um erro fatal. Para Lewin, os acontecimentos posteriores (expulsão e exílio de Trotski, danação de Kamenev, Zinoviev e Bukharin e a despolitização do partido) foram consequência direta da oportunidade desperdiçada de destituir Stálin quando ele ainda se encontrava fragilizado. Stálin consolidaria assim uma hierarquia de poder que caracteriza toda a história posterior da URSS: Quem assumisse a cadeira de secretário-geral do PCUS seria na prática o verdadeiro comandante do país.

O poder total de Stálin na década de 1930, porém, demonstrou-se ser mais frágil e controverso do que a noção de totalitarismo dos historiadores do pós-segunda guerra e ideólogos anticomunistas estipularam. Para Lewin, um cidadão russo que imigrara após a revolução de outubro de 1917 e voltasse para seu país no período da NEP poderia ver resquícios do antigo regime e sentir-se familiarizado com a vida russa (sobretudo no campo) mesmo sob governo bolchevique. Mas se ele voltasse na década de 1930 se sentiria num país estrangeiro. Stálin mudara completamente a sociedade russa, mas não da maneira como ele próprio imaginava. Para levar a cabo uma industrialização rápida precisou despojar milhões de camponeses de suas terras, obrigando-os a ingressar nas fazendas coletivas ou migrar para as grandes cidades. Uma industrialização rápida necessitaria também de um processo de urbanização sem precedentes. Segundo Lewin, a sociedade majoritariamente de origem agrária e tradicionalista nos costumes moldaria o espaço urbano soviético. A vida urbana na União Soviética sofreria profundas transformações com o choque entre a necessidade de racionalidade do espaço urbano e o trabalho industrial com a mentalidade tradicionalista do novo operariado emigrado em massa do campo. Apartamentos coletivos superlotados transformaram radicalmente as relações familiares e de vizinhança. O deficit da população masculina, devido a Primeira Guerra Mundial e a Guerra Civil, obrigou as mulheres a terem uma jornada dupla de trabalho ao terem que cuidar dos filhos e ao mesmo tempo trabalharem em fábricas ou nas fazendas coletivas, mudando radicalmente as relações de gênero. Nas relações de trabalho, o abandono laboral por parte de jovens trabalhadores era algo profundamente corriqueiro devido as más condições no ambiente de trabalho, como também na inexperiência da maior parte dos quadros de chefia das fábricas. Apesar de o esforço impressionante por parte do governo na campanha de instrução e capacitação, a necessidade de mão de obra para dar cabo aos audaciosos planos quinquenais levaram milhares de trabalhadores a assumirem cargos de comando sem terem terminado os estudos. Muitos ascenderam a cargos da administração e do partido produzindo uma ascensão social ampla e rápida, mas também gerando uma instabilidade na condução da gestão das fábricas e da administração pública pela rotatividade extrema nos cargos de comando. Os expurgos aprofundaram ainda mais essa situação.

Segundo o autor, para levar a cabo uma transformação social e econômica radical, com consequências humanas igualmente grandes, Stálin não poderia ter nenhum tipo de oposição, mas também nenhum tipo responsabilização. Para isso, não bastava eliminar seus opositores no partido e na administração, mas tornar o próprio partido apenas uma engrenagem do sistema estatal despojando-o de qualquer poder de decisão em assuntos importantes. O aumento vertiginoso de renovação dos quadros e a expansão de membros nas instâncias superiores do partido (Comitê Central e Politburo) visavam a sua própria fragmentação e enfraquecimento. Os novos membros eram formados não pelo ambiente plural bolchevique, mas pela centralização na figura de Stálin. Segundo Lewin, o estado soviético ganharia com isso a personificação das próprias características psicológicas do líder supremo. Segundo o autor, a noção de heresia, herdado do cristianismo, ganharia uma forma de ideologia estatal no governo stalinista ao eximir Stálin de qualquer erro e responsabilizando todos os cargos de chefia inferiores por qualquer problema ocorrido na execução dos planos, mesmo quando o problema estivesse nos próprios planejamentos econômicos estabelecidos por instâncias superiores. Em outras palavras, era necessário recorrer ao medo e ao terror constantemente, da mesma maneira que os cristãos acreditam que todos os indivíduos são pecadores, mesmo quando aparentemente não cometeram pecados graves. É nessa conjuntura que o Comissariado para Assuntos Internos (NKVD) se tornará não apenas o responsável pela manutenção da ordem interna, mas a maior e mais próspera instituição do período stalinista ao incorporarem atribuições da Justiça, Segurança e também da economia, transformando os campos de trabalho (GULAG) num dos motores do desenvolvimento do país ao usarem mão de obra de presos em grandes e dispendiosas obras públicas. Para Lewin, o agigantamento do NKVD é um exemplo de algo não planejado e da fragilidade do sistema governamental, ao permitir um estado dentro do estado, com capacidade não só de trazer para si atribuições de outros ministérios e instituições, mas também de ameaçar indivíduos poderosos de outras esferas de poder. A autonomia na contratação de pessoal, o secretismo nos gastos e de seu orçamento interno, o número de agentes armados e com autoridade policial e a disponibilização de milhões de trabalhadores braçais, fizeram da instituição o maior exemplo de piramidização da administração pública no regime stalinista. A partir de então, todo indivíduo com o mínimo poder de comando na administração pública se tornaria um pequeno Stálin. Porém, como salienta Lewin, isso não significava que o NKVD fosse um exemplo de eficiência, o que é demonstrado pelas sucessivas queixas dos ministérios responsáveis pelo orçamento e pela condução da economia sobre o custo altíssimo da instituição como também os diversos relatórios que chegavam ao Comitê Central com denúncias das más condições de vida e baixa produtividade dos presos nos campos de trabalho e, o mais grave, da insubordinação e corrupção de seus agentes. O que Lewin demonstra é que havia uma diferença entre o poder pessoal de Stálin e de seu círculo íntimo, o aparato do partido e a administração do estado. Em relação ao aparato do partido, apesar de as grandes decisões do país ficarem na mão de Stálin e de seu pequeno grupo seleto restando apenas discutir questões de menor importância, isso não eliminava a influência de seus membros na nomeação de indivíduos e em decisões nos ministérios e na administração. Da mesma maneira os administradores, na tentativa de sempre atingir as metas definidas na [*****]pula do poder e manter seu status quo, buscavam influência no aparato do partido muitas vezes fazendo uso de suborno. Segundo Lewin, essa orgia entre as esferas de poder levou a uma necessidade de desestalinizar o estado por parte do próprio círculo íntimo de Stálin (Malekov, Beria, Kaganovich e Molotov). A noção das fragilidades do stalinismo eram evidentes para esse grupo e após a morte do líder supremo não demoraram a começar a implementar mudanças. Muitas delas começaram ainda com Stálin vivo como a “deseconomização do partido”, despojando o PCUS de influência nas decisões de carácter econômico ao transformarem os comissariados em ministérios. Isso deu maior autonomia ao ministério responsável pelo orçamento e pela economia e aos poucos enxugando o agigantamento do NKVD ao tirar da instituição atribuições que pertenciam, segundo a lei soviética, aos ministérios. Segundo Lewin, as reabilitações de milhares de presos políticos após a morte de Stálin foi apenas consequência de um processo já iniciado antes e que tinha se tornado inevitável pelas condições anteriores terem se tornado insustentáveis. Para ele, as denúncias de Khrushchov contra Stálin e sua campanha de desestalinização, em 1956, foi a radicalização de um processo já em andamento quando Malenkov e Béria ainda estavam no comando.

Uma última contribuição de Lewin para compreender o período stalinista é a sua rejeição a ideia de “despotismo asiático” do sociólogo Karl Wittfogel como explicação para o sistema stalinista. Para Lewin, ainda que Stálin visse na autocracia czarista e na noção imperial de “Grande Rússia” o modelo histórico para justificar a centralização de seu poder, em nada se compara ao tradicionalismo econômico e mudança em longo prazo do modelo de despotismo asiático descrito por Wittfogel. Stálin queria uma autocracia associada a um desenvolvimento econômico radical e rápido tornando a União Soviética uma potência capaz de concorrer com os países capitalistas mais desenvolvidos de sua época. Para isso era necessário romper os laços tradicionais do passado, sobretudo em relação a atividade agrária que caracterizaria o modelo de despotismo asiático. Segundo Lewin, Stálin fez uso de um “despotismo agrário”, desapropriando os camponeses, mecanizando a atividade agrária e tornando as terras propriedade do estado, com objetivo de gerar industrialização em curto prazo a partir do trabalho remunerado. Segundo o autor, esse tipo de despotismo e suas graves consequências humanas se deu em praticamente todos os estados europeus que passaram pelo processo de modernização e industrialização. Para ele, a modernização soviética foi sui generis pela rapidez com que se deu todo o processo de despojar o campesinato e sua transformação em operários assalariados e urbanos. Ainda que fizesse uso do trabalho forçado de presos, esse tipo de exploração da força de trabalho demonstrou ser caro e improdutivo, obrigando o comando do NKVD a defender remuneração para incentivar o trabalhado aos presos por crimes comuns (excluindo os presos políticos) na tentativa de incentivar a produtividade. Outra consequência do estado stalinista foi o processo de remodelar a ideologia do PCUS, extinguindo a política do “igualitarismo” e outros ideais bolcheviques, considerados utópicos e incompatíveis com a nova conjuntura, substituindo-os por um neonacionalismo russo, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, mais compatível com a mentalidade dos membros poderosos da nova elite stalinista, como Jdanov e Kuznetsov, dispostos a criar constantemente inimigos internos para aumentar seu poder.

Na segunda parte do livro, Lewin analisa as transformações ocorridas na URSS após a morte de Stálin em que ele alerta que apesar de na essência o sistema permanecer o mesmo, seguiu por diferentes caminhos que levaram a reformas que permitiram uma sobrevida a esse mesmo sistema.
Esse período será marcado por: 1) a desestalinização das instituições e volta da legalidade do aparato judicial. 2) a estabilidade da nomenklatura e dos quadros do partido a partir da criação de uma gama de privilégios e acesso exclusivo a certo bens de consumo. 3) uma tendência para reformas e mudanças constantes no campo administrativo e econômico como resposta a desaceleração da economia. 4) o surgimento da dissidência política e de um certo grau de pluralismo no debate público. 5) uma nova onda de urbanização gerada pela migração de trabalhadores das fazendas coletivas para as regiões urbanas, de trabalhadores das grandes cidades para as cidades médias industriais recém-inauguradas e no incentivo governamental de colonização de regiões pouco habitadas na Sibéria e na Ásia Central com objetivo de expandir a produção agrícola. Para o autor, o primeiro passo para desestalinização foi o desmantelamento do império industrial da NKVD, ao reduzir radicalmente a população carcerária, desmontando os campos de trabalho forçado, desmobilizando e remanejando o número exorbitantes de agentes e administradores, retirando atribuições e poderes que não estavam previstas na constituição, e substituindo a instituição por uma outra menor e mais eficiente: a KGB. Para Lewin, a história da União Soviética pós-stalinista é caracterizada pelo esforço das lideranças de tornar o regime legal, fazendo respeitar a constituição soviética e reduzindo a arbitrariedade das autoridades e do aparato repressivo. Segundo o autor, esse esforço de legalização será bem sucedida, o que não quer dizer que o estado se tornará mais democrático no sentido ocidental, mas que cada esfera de poder passou a estar limitada nas suas atribuições definidas na lei e pelos regimentos internos de cada instituição. Lewin fundamenta sua visão a partir das diversas mudanças ocorridas no código penal, tornando-a menos punitiva e focando na reabilitação dos presos, e na redução radical de números de prisões por motivações políticas a partir da década de 1960. A partir desse momento, um cidadão soviético só poderia ser condenado e preso após ter passado por um julgamento onde fosse apresentado provas que o condenassem segundo o código penal, podendo o réu recorrer a tribunais superiores para revisão ou anulação da pena, sempre acompanhado por um advogado de defesa. Essa situação era incompatível com o período stalinista, onde os órgãos de segurança se sobrepunham a todos os outros poderes tendo a liberdade de punir arbitrariamente. Essa mudança qualitativa do estado possibilitou que grupos dissidentes surgissem e passassem a ter algum tipo de influência na sociedade. Para Lewin, esses grupos nunca foram homogêneos, mas conseguiram influenciar não apenas a opinião internacional, mas também algumas autoridades. Nem todos os dissidentes eram anticomunistas ou desejavam o fim da União Soviética, sendo muitos deles socialistas ou marxistas convictos que tentaram influenciar as autoridades com suas ideias (como o físico nuclear Andrei Sakharov e o historiador Roy Medvedev). Como também nem todos os anticomunistas soviéticos se tornaram liberais ou simpáticos aos valores democráticos ocidentais, muitos deles inclusive rejeitando esses mesmos valores para a Rússia pós-soviética, preferindo resgatar valores considerados tradicionais e nacionalistas caucados num estado conservador, religioso e autocrático. Segundo o historiador, a voz dada pela mídia e pelos governos ocidentais a certos dissidentes, como o escritor Aleksandr Soljenitsin (anticomunista ferrenho, mas pouco simpático a democracia liberal e ao liberalismo), ajudaram a construir uma ideia cômoda no ocidente de que a URSS de Stálin e a URSS pós stalinista fossem a mesma coisa e que nada havia mudado. Para Lewin, só foi possível surgir um ambiente mais plural a partir da década de 1960 porque dentro do próprio estado havia indivíduos em lugares de poder que compartilhavam de valores e visões de mundo semelhantes aos dos dissidentes ou que conheciam profundamente as deficiências do sistema e da necessidade real e urgente de reformas que possibilitassem a volta da inovação tecnológica e o aumento da produtividade econômica. No campo intelectual e literário, Moshe Lewin ressalta a importância da revista Novy Mir e de seu editor Aleksandr Tvardovski, na publicação de obras artísticas incompatíveis com o realismo socialista e no prestígio de escritores como Soljenitsin. A revista não só viria a se tornar um ambiente importante no campo literário nos anos de “degelo”, mas difundiriam debates importantes sobre os rumos do país como a celebre discussão, desencadeados pelo relatório Liberman, sobre a necessidade de reforma da economia soviética.

Ainda na segunda parte, Lewin provoca o leitor a ver a sociedade soviética pós stalinista como dinâmica e menos monolítica onde as relações de poder se apresentam de maneira mais complexa não estando tudo ao gosto de um líder supremo ou de quem assumisse cargos de poder. Para o autor, a partir da década de 1950 surgiram personagens convictamente reformistas que estabeleceram mudanças significativas muito antes da Perestroika de Gorbatchev. São eles: Andrei Gromiko (principal responsável pela política exterior da URSS na década de 1960 até o início dos anos de 1980), Nikita Khrushchov (ex-secretário geral do PCUS entre 1954 e 1964), Anastas Mikoyan (um dos membros mais longevos do Politburo e ator fundamental para consolidar a desestalinização), Aleksei Kosigin (principal responsável pela economia nas décadas de 1960 e 1970) e Iuri Andropov (chefe da KGB na década de 1970 e secretário geral do PCUS entre 1982 e 1984). Com exceção de Khrushchov, esse grupo heterogêneo e de personalidades tão distintas estabeleceram mudanças no seio do sistema e que muitas contrariavam certos interesses do outros membros do comando soviético. Gromiko foi o responsável por estabelecer o prestígio da URSS na comunidade internacional tornando-se o rosto do país no exterior e possibilitando a política de “détente” com os EUA, evitando assim uma guerra nuclear. Khrushchov, enquanto secretário geral, estabeleceu o rompimento com o stalinismo ao iniciar um processo amplo de desestalinização, expondo os crimes de Stálin, e reestabelecendo a legalidade nas instituições soviéticas. Mikoyan, apesar de se declarar um stalinista convicto, foi um dos principais responsáveis pela reabilitação de milhares de presos políticos na década de 1950 ao ser nomeado como líder de uma comissão oficial para investigar possíveis excessos do stalinismo na década de 1930, como também por apoiar Khrushchov frente ao grupo stalinista, liderado por Malenkov, que visava estancar os danos causados pela divulgação dos crimes de Stálin. Segundo Lewin, apesar do papel importante desempenhado por Gromiko, Khrushchov e Mikoyan de distinguir o stalinismo da União Soviética, é Kosigin e Andropov que desempenharam o melhor exemplo de estadistas cientes das deficiências do sistema e atuaram para estabelecer mudanças mais profundas. O primeiro buscou mudar o foco da economia soviética da indústria pesada para a indústria leve, apresentando nas reuniões do Presidium relatórios que demonstrava a real situação da economia soviética e necessidade de uma reforma estrutural ampla. O deficit de mão de obra na parte europeia do país, a desigualdade de industrialização entre as repúblicas asiáticas e europeias, a queda de natalidade, o dispendioso custo da política externa, o atraso tecnológico em relação ao Ocidente, os desperdícios da tendência expansiva da economia (que priorizava a construção de cidades industriais em regiões pouco habitadas em vez de investir nas que já existiam) eram alguns dos temas incansavelmente abordados por seus relatórios na tentativa de efetivar reformas mais amplas. Por resistência do “grupo conservador”, liderado pelo secretário geral, Leonid Brejnev e de seu círculo próximo no Presidium, e da nomenklatura em abrir mão de seus privilégios, fez as reformas propostas por Kosigin não irem adiante, condenando o sistema soviético na década de 1980. Já Andropov foi fundamental para divorciar a KGB do passado da NKVD tornando-a uma instituição de prestígio ao mudar as práticas de seus agentes na relação com os dissidentes e com a sociedade geral (ainda que seja de pleno conhecimento os abusos das internações psiquiatrias forçadas de dissidentes e indivíduos “desviantes” usadas como uma nova forma de punição durante a sua gestão). Profundamente ciente da péssima conduta de seu antecessor no poder, no curto período que foi secretário-geral buscou combater a corrupção e os privilégios da nomenklatura, tentou efetivar as reformas econômicas propostas por Kosigin e promover a abertura de uma maior pluralidade de ideias no campo intelectual e acadêmico, necessário para a renovação das ciências econômicas e sociais na URSS, e renovou os quadros do partido e do Presidium com indivíduos mais jovens e com maior nível educacional. Para Lewin, a longa duração de Brejnev no poder, a substituição de estadistas divergentes como Mikoyan e Kosigin por políticos mais conformistas e alinhados ao brejnevianismo e o desaparecimento da geração reformista dos anos de 1960 geraram um vácuo na sociedade soviética que foi fatal para a execução das mudanças proposta por Gorbatchev nos anos de 1980. Muitas das propostas que o último líder soviético propôs já haviam sido esboçadas e debatidas por diversos especialistas vinte anos antes e eram conhecidas por várias autoridades que, por diversos motivos, não conseguiram ou não quiseram implementá-las.

Na terceira e última parte do livro, Lewin retoma algumas questões já discutidas anteriormente (a diferença entre leninismo e stalinismo, a estrutura burocrática, a escassez de bens e déficit de mão-de-obra) para defender sua tese de que a URSS passou longe de ser um país socialista de fato, mas um país desenvolvimentista tendo seu sistema desempenhado um papel histórico de industrializar e modernizar a própria Rússia e os antigos territórios de seu império que encontrava-se atrasados em relação as potências liberais da Europa ocidental (Inglaterra, França, Alemanha). Ele inicia seu raciocínio revisitando os acontecimentos que levaram a Revolução de Outubro e a criação de um poder bolchevique. Utilizando como fonte as memórias publicadas de algumas lideranças do partido Socialista Revolucionário (socialistas moderados) e do Cadetes (liberal-conservador), Lewin se opõe a ideia de que o governo provisório foi um representante direto da burguesia ou que constituísse uma aliança de direita. Segundo Lewin, o Governo Provisório foi sobretudo composto por políticos ligados aos Socialistas Revolucionários e Sociais Democratas da ala menchevique e, portanto, aglutinava indivíduos identificados com um socialismo democrático, se aproximando de pautas dos sociais-democratas europeus, enxergando a necessidade de participação dos liberais e outras representantes burgueses numa futura Assembleia Constituinte. Essa percepção gerou conflitos com bolcheviques e socialistas revolucionários mais radicas que reivindicavam a criação de um estado socialista e portanto a participação de liberais e políticos de direita na Assembleia, ainda que não fossem completamente excluídos, não poderiam desempenhar papel decisivo nas decisões do novo regime. Por outro lado, os liberais e conservadores menosprezaram a necessidade de sua participação numa assembleia composta majoritariamente pela esquerda. Para as lideranças liberais e conservadoras, a criação de uma assembleia naquele momento era indesejável e perigoso pois, para eles, a Rússia precisava primeiro restabelecer a ordem, através de um estado de emergência liderado pelas forças armadas, o que só poderia ocorrer com a restituição do czar ao trono. Isso levou a um apoio generalizado por parte da direita e dos membros do Cadetes (principal partido de orientação liberal-conservadora na Rússia) a tentativa de golpe do general Lavr Kornilov, enterrando definitivamente as chances de criação de uma assembleia liderada pela esquerda democrática (e com isso a possibilidade de uma coalização entre socialistas e liberais) e possibilitando a derrubada do governo provisório em outubro pelos bolcheviques e pela esquerda revolucionária. Para Lewin, é um equívoco culpar unicamente Lênin e os bolcheviques pela desestabilização política e fracasso do governo provisório pois, os liberais se mostraram hostis em estabelecer uma aliança com a esquerda democrática e reivindicavam a dissolvição do governo provisório em prol de uma ditadura militar e da restauração da monarquia. A conclusão é que os liberais russos da época era bem menos liberais que seus homólogos europeus ao buscarem preservar os privilégios do antigo regime sendo hostis a qualquer movimento progressista e popular que ameaçassem esses mesmos privilégios.

Uma outra questão levantada por Lewin é o grau de participação da população nos acontecimentos ocorridos entre fevereiro e outubro de 1917. O cataclismo político e social que abatera a Rússia no início do século XX foi fruto de uma série de eventos que fizeram o país regredir profundamente em todas esferas da vida pública afetando grande parte da população que era majoritariamente camponesa. A maneira injusta com que o czarismo transformou servos em camponeses livres no final do século XIX, o desastre da campanha russa na guerra russo-japonesa (1905) e Primeira Guerra Mundial e o colapso da economia gerado por elas desestabilizou profundamente a estrutura familiar dos camponeses acostumados a um estilo de vida tradicional e com pouco acesso à instrução e serviços básicos. A grande maioria dos soldados do exército imperial russo eram camponeses pobres e, com o colapso de frente oriental na Primeira Guerra Mundial, milhares deles desertaram, porém carregando consigo armas e munições, fugindo para as cidades e também para o campo. Cansados de sofrerem com dívidas abusivas e ameaça de violência por parte dos grandes proprietários de terra, esses camponeses eram os mais prejudicados com a guerra ao terem que abandonar suas colheitas para encherem as fileiras do exército imperial. A queda repentina do czar e a criação de um governo provisório liderado pelos socialistas revolucionários e mencheviques empoderou o campesinato que viam a possibilidade de ter suas reivindicações atendidas pelos novos atores políticos. Com a volta de milhares de camponeses-soldados armados foi possível iniciar uma reforma agrária espontânea, visto que a maioria dos grandes proprietários de terra, ao verem suas garantias e privilégios ameaçados com a queda do czar, tiveram que negociar com os camponeses armados ou abandonarem suas propriedades em direção as grandes cidades ou mesmo para fora do país. Para Lewin, foi essa combinação de insatisfação generalizada por parte do campesinato e retorno de milhares de camponeses-soldados armados as suas terras de origem, que desertavam massivamente do fronte e dispostos a lutar por seus interesses e por novas ideologias, que possibilitou os acontecimentos que levariam a fragilização da autoridade de um poder centralizador no estado russo e que resultou em duas revoluções no ano de 1917. Para Lewin, por mais que a maioria do campesinato não se posicionasse em favor de uma facção ou partido político específico, ainda assim as duas revoluções foram possibilitadas devido ao sentimento de insatisfação e mobilização dessa classe pois, a grande maioria dos operários urbanos russos tinha origem camponesa e haviam migrado para a cidade a pouco tempo.

Entre 1917 e 1921, a Rússia viveu uma fragmentação do poder por diferentes facções políticas (vermelhos, brancos, verdes), grupos armados separatistas, exércitos estrangeiros e até bandos criminosos comandando diferentes territórios do extinto Império Russo. Isso levou a uma profunda regressão em todas as esferas da vida política, social, cultural e econômica da grande maioria da população e que, além de viverem em constante ameaça de diferentes grupos armados e constantemente destituídos de suas colheitas e de seus poucos bens materiais, ainda eram obrigados a ceder mão-de-obra das plantações para os exércitos ocupantes. O fim da guerra civil em 1921 e a criação de um novo estado (a URSS), ao mesmo tempo que possibilitou o restabelecimento da ordem, frustrou aqueles que esperavam um grande salto na qualidade de vida da população. O país encontrava-se devastado, com a economia arruinada, e isolado mundialmente devido a hostilidade dos governos estrangeiros aos ideais revolucionários dos novos governantes soviéticos. Segundo o autor, os sucessos e fracassos da NEP na década de 20 e dos planos quinquenais na década de 30 sofreram forte ressonância do profundo atraso gerado pela desestabilização nacional ocorrida no período entre 1914 e 1921. A Rússia perdera milhões de pessoas pela fome e pela guerra, a maior parte dos funcionários públicos, trabalhadores qualificados e da população escolarizada abandonou o país ou mudou radicalmente de profissão. Já muitos dos operários experientes abandonaram as fábricas para lutarem na Guerra Civil, assumirem atividades políticas ou migraram para o campo em busca de melhores condições de abastecimento. Portanto, a URSS nasce a partir de condições extremamente desfavoráveis e boa parte do esforço político das autoridades soviéticas nas duas primeiras décadas de existência teve como objetivo responder ao atraso gerado por oito anos de profunda regressão em todas as esferas da vida social. Esse quadro histórico exposto por Lewin ajuda a compreender o tipo de modernização sui generis implementado na URSS nas décadas posteriores.

Lewin finaliza tocando num tema delicado e que sustenta a nostalgia de boa parte dos russos em relação a URSS: o milagre de bem-estar da década de 1970. Esse período, marcado por uma maior disponibilidade de bens e serviços, melhoria na moradia e aumento da renda das famílias é contrastado pelo aumento dos mercados paralelos e pela corrupção. O acesso de muitas famílias a pequenos lotes de terra possibilitou que estas passassem a produzir seus próprios alimentos e mesmo passar a vender o excedente em feiras ou outras formas de mercado informal, possibilitando garantir uma renda extra para além do salário normal pago pelo estado. Outros soviéticos passaram a oferecer serviços informais nas horas vagas para complementar a renda. A demanda desses serviços partia da dificuldade do cidadão comum de conseguir adquirir determinados objetos como peças de reposição para automóvel ou de eletrodomésticos, sobretudo em cidades menores e em regiões mais afastadas. Muitos funcionários qualificados viram nisso uma oportunidade e passaram a fundar oficinas privadas dentro das próprias fábricas onde trabalhavam, se apropriando portanto dos objetos que fabricavam, mas que pertenciam ao Estado, e cobrando por eles um valor acima dos estabelecidos pelo governo. Esse mercado paralelo de serviços eram, muitas vezes, incentivado pelos próprios administradores das fábricas que passaram a cobrar vantagens e participação nesses novos negócios. Com funcionários trabalhando mais tempo em causa própria e com conivência dos administradores, diminuiu ainda mais a qualidade da produtividade nas indústrias, num momento em que o governo buscava maneiras de aumentar a produtividade, cientes das deficiências da economia do país. Com isso, Lewin defende que grande parte do bem-estar dos soviéticos nesse período se deveu não apenas as ações do governo de subsidiar os preços dos produtos e aumentar os salários, mas sim a uma tendência cada vez mais generalizada dos soviéticos buscaram complementar a renda ao trabalharem por conta própria nas horas de folga. Com o aumento da inflação na década de 80, o que era uma atividade extra e ocasional passou a ser praticamente necessária para muitos indivíduos acarretando numa prática de esforço e produtividade mínima em seu emprego formal e passar a se dedicar mais fortemente as atividades particulares. Se por um lado esse mercado paralelo contribuiu para uma maior disponibilidade de bens e serviços nas duas últimas décadas do país, por outro fez formar grupos mafiosos poderosos que passaram a monopolizar muitas atividades e estabelecer preços e tarifas segundo seu critério. Essa nova realidade tornava praticamente impossível a reforma de todo o sistema pelos mandatários do regime que encontravam cada vez mais resistência não apenas na população, mas nas classes mais privilegiadas que passaram a utilizar seu poder e influência para privatizar o que era público. Lewin define o poder no pós-stalinismo dominado por uma “burocracia absolutista” pois, ao privatizar o que é público para benefício próprio, os administradores passaram também a submeter o próprio poder político representado pelo Partido Comunista. Como Lewin demonstra nos primeiros capítulos, isso se deveu a despolitização do próprio PCUS por Stálin na década de 1930 quando tornou o partido, de uma organização legítima e pluralista (ainda que autoritária), em burocratas a serviço do próprio Stálin. O autor porém relativiza a responsabilidade unicamente ao stalinismo, mas as lideranças do próprio partido durante a NEP ao serem incapazes de formar novos quadros suficientes para gerir a máquina pública e por isso depender dos especialistas e burocratas czaristas para administrar o país. Para o autor, esse não foi um processo unicamente russo, mas foi comum em praticamente todos os países que passaram por revoluções. Porém, esse processo se aprofunda com Stálin quando este recorre a tradição despótica e autocrata do antigo regime para se consolidar no poder e implementar as mudanças que via como necessárias para industrializar e modernizar o país. Lewin não nega os avanços em diversas áreas em que a URSS, quando não esteve no topo (como as viagens espaciais e a industria militar), esteve entre os países com melhor desempenho (em áreas como educação, ciência, cultura e saúde). Porém, para o autor, era praticamente impossível o sistema evoluir e manter todos esses avanços sendo dominado por uma “burocracia absolutista” que submetia o poder político. Pra mudar isso seria necessário uma nova revolução que transferisse novamente o poder políticos ao PCUS e não aos burocratas e administradores que, aos poucos, iniciavam um processo de privatização paralela no seio de uma economia planificada. Segundo o autor, se a URSS pós-stalinista fosse um estado totalitário (como afirmava os teóricos e historiadores anticomunistas) o sistema não teria desmoronado. Para Lewin, a URSS só foi uma ditadura de partido no período em que a estrutura e membros do partido bolchevique anterior a revolução continuou a comandar o país, ou seja, antes da ascensão de Stálin e do stalinismo. A morte de Stálin leva consigo o poder centralizado numa única figura e a ascensão de um poder dominado por uma classe burocrática empoderada e expandida, disposta a aumentar sua influência e seus privilégios. Todas as lideranças políticas que tentaram confrontá-la terminaram por deixar o poder (Nikita Khrushchov, Anastas Mikoyan, Aleksei Kosigin etc.) ou tornaram-se conformados. Para Lewin, a morte de Iuri Andropov impossibilitou de vez que uma nova revolução ocorresse e confrontasse o poder dessa classe emergente, preservando o próprio sistema soviético. Portanto, o sistema soviético desmoronou quando a “burocracia absolutista” viu mais vantagens nas privatizações, na economia de mercado, no apoio político e financeiro dos EUA e na fragmentação do país em nacionalidades do que manter um poder soviético. Para o autor, ao não ser capaz de se renovar, democratizando-se, restabelecendo o domínio da administração do país e o prestígio da população, o poder soviético, na forma do PCUS, perdeu seu sentido de existir, dando lugar a atores políticos e econômicos que, longe de buscar novos rumos, símbolos e valores para o país, preferiu um recuo nostálgico ao liberalismo conservador do czarismo anterior a Primeira Guerra Mundial.

“O Século Soviético” é uma contribuição importante para elucidar muitas questões envolvendo a vida social e política na URSS. Lewin apresenta interpretações bastante provocadoras e inquietantes embasadas como uma heterogeneidade de fontes (documentos e dados oficiais soviéticos, pesquisas e estudos históricos produzidos na Rússia e no exterior após a extinção da URSS e até memórias e autobiografias de figuras políticas de importância). É um livro importante para qualquer um que queria ver a experiência soviética de maneira mais complexa e dinâmica, com todas as contradições que o acompanharam durante quase 70 anos de existência. Lewin sai do lugar-comum ao apresentar o sistema soviético a partir da combinação de forças entre burocratas, administradores e quadros inferiores do poder político para além dos secretários-gerais. É bastante provocador como o historiador desconstrói a ideia equivoca de que a população soviética reagia de maneira passiva as medidas tomadas pela [*****]pula do governo. Mesmo nos períodos de maior repressão a população subvertia cotidianamente o poder de diferentes formas inclusive iniciando ela mesma um processo paralelo de privatização. Da mesma maneira, as autoridades soviéticas não eram completamente alheias e indiferentes as reivindicações e insatisfações da população. Talvez o que mais surpreende no trabalho de Moshe Lewin é o fato dele apresentar a URSS de maneira complexa e dinâmica contradizendo a imagem de bicho papão totalitário que os anticomunistas reproduzem e muito longe também do paraíso dos trabalhadores que certos setores da esquerda ainda insistem cultuar. Segundo o autor, o processo de urbanização e industrialização na década de 30 e o tipo de modernização que resultou dela é a chave para compreender o apogeu e o declínio do regime. Para quem não é familiarizado com a história soviética não é uma leitura muito recomendada. Lewin cita muitos números e dados estatísticos de maneira extensiva o que torna a leitura um tanto maçante e cansativa em alguns trechos. Se as duas primeiras partes do livro apresentam interpretações bastante inquietantes e originais, a terceira parte apresenta-se um pouco repetitiva com o autor retomando e expandindo algumas questões já abordadas nas partes anteriores para defender sua polêmica tese de que o sistema soviético, caracterizada pela nacionalização dos meios de produção e governado por um poder político autoritário, não foi socialista, mas apenas parte de um processo histórico de modernização necessária a países em desenvolvimento. Moshe Lewin defende que um sistema não ser capitalista não seria o suficiente para defini-lo como socialista, como defende tantos defensores do neoliberalismo atual que, seja por ignorância ou por desonestidade intelectual, generalizam qualquer sistema onde tenha algum tipo de participação do estado na economia, independente do regime político ser de direita ou de esquerda, taxando-o como socialista. Para Lewin, dizer que a URSS foi um país socialista é um equivoco histórico seríssimo que corrobora com a ideologia do anticomunismo que associa Hitler com Stálin com intuito, não de estudar e repudiar o nazi-fascismo, mas de condenar unicamente os excessos dos regimes de esquerda, ocultando os crimes e violações cometidos pelas potências capitalistas ocidentais com a bandeira da democracia e do liberalismo.
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