Carina 23/09/2013
Se não fosse machista, seria ótimo
A obra, constituída de capítulos curtos, por vezes não dá a profundidade devida a alguns temas. No entanto, não se pode negar que se trata de um livro bem escrito, com bom embasamento. Além de recorrer a teorias e a leituras diversas, Charles Kiefer usa exemplos de sua carreira de professor de produção literária.
O que mata o livro é a frase "No concurso literário da vida, nascer homem já é mais que meio caminho andado.". É só uma oração em meio a uma obra de mais de 100 páginas, mas é o suficiente para jogar por água abaixo a credibilidade do autor.
Além desta pérola machista, alguns trechos do texto também deixam perceber um certo tom elitista e superior. Uma pena.
O aluno que sacraliza o próprio texto, que contempla demais a própria imagem, que não aceita a crítica, está fadado a ter o mesmo destino de Narciso – fenecer de inanição à beira da fonte.
Outros, menos vaidosos e mais abertos à dialética do desenvolvimento, serão capazes de ir mais longe, de produzir obra mais sólida, de construir carreira mais consistente.
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Narrar é um des-velamento. Desencobrir o que estava velado, no mundo e em si mesmo, e re-velar, tornar a cobrir de véus o que estava evidente, esconder outra vez. Esse duplo movimento, de fazer aparecer e de fazer esconder – o excesso de luz também impede de ver –, é a essência do bom conto. Na poesia, essa dialética melhor se mostra. Na prosa, a luz difusa e homogênea do verbo desgastado pela cotidianidade também permite ver, mas superficialmente e sob um mesmo tom monocromático.
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Pixis foi um músico medíocre, mas teve o seu dia de glória no distante ano de 1837.
Num concerto em Paris, Franz Listz tocou uma peça do (hoje) desconhecido compositor, junto com outra, do admirável, maravilhoso e extraordinário Beethoven (os adjetivos aqui podem ser verdadeiros, mas – como se verá – relativos). A plateia, formada por um público refinado, culto e um pouco bovino, como são, sempre, os homens em ajuntamentos, esperava com impaciência.
Listz tocou Beethoven e foi calorosamente aplaudido. Depois, quando chegou a vez do obscuro e inferior Pixis, manifestou-se o desprezo coletivo. Alguns, com ouvidos mais sensíveis, depois de lerem o programa que anunciava as peças do músico menor, retiraram-se do teatro, incapazes de suportar música de má qualidade.
Como sabemos, os melômanos são impacientes com as obras de epígonos, tão céleres em reproduzir, em clave rebaixada, as novas técnicas inventadas pelos grandes artistas.
Listz, no entanto, registraria, conforme Stanley Edgar Hyman, em The armed vision, citado por Antonio Candido, que um erro tipográfico invertera no programa do concerto os nomes de Pixis e Beethoven...
A música de Pixis, ouvida como sendo de Beethoven, foi recebida com entusiasmo e paixão, e a de Beethoven, ouvida como sendo de Pixis, foi enxovalhada.
Esse episódio, cômico se não fosse doloroso, deveria nos tornar mais atentos e menos arrogantes a respeito do que julgamos ser arte.
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A arte não imita a vida. Ela produz outra vida.
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Talvez não seja possível ensinar a escrever; mas é plenamente possível ensinar a aprender a escrever. Um escritor – ou um aluno que não é um eterno aprendiz – é um escritor ou um aluno que não se contenta em ser simulacro de si mesmo.
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Elias Canetti não quis, jamais, render-se ao adjetivo, como o fez Proust, porque orientalizaria o estilo. Canetti vê o adjetivo como pedra preciosa, enfeite, adorno.
Para Alejo Carpentier, o adjetivo é a ruga do texto, capaz de envelhecê-lo prematuramente. E o escritor que o usa em demasia, um tintureiro do estilo.
Floreio, maneirismo, ourivesaria. Mas, mais que isso, penso que o adjetivo trai a ideologia do texto. E, nesse sentido, é necessário, é divertido, é sociológico.
Ao usá-lo, o narrador indica preferências, expõe preconceitos, deixa as impressões digitais de seu espírito sobre a matéria transparente das substâncias.
Como leitor, mais que um receptor de relatórios, quero ser investigador, inquiridor. E os adjetivos são as provas indiciais dos maus autores. Mas, usados por um Jorge Luis Borges, os adjetivos se convertem em poderosas armas estilísticas.
Se olharmos para o adjetivo como sintoma, indício ou marca, e não apenas como apêndice do substantivo, ele pode deixar de ser o saco de pancadas do estilo.
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Não há escritor que não se debata com a difícil questão dos títulos de suas obras, sejam elas poemas, crônicas, contos, novelas ou romances. O título faz a primeira ponte com o mundo, é o primeiro gancho de interesse, a primeira luz do farol no nevoeiro. A obra está lá, enrodilhada em si mesma, mas escondida, e é preciso uma etiqueta, um visgo ou um guizo para que ela seja percebida pelo possível leitor. Nesse instante, o autor defronta-se com uma questão ética – ser fiel a si mesmo e à obra ou a esse fátuo e imponderável leitor.
O leitor é uma abstração. Só existe em potência. Cada uma das partes envolvidas no processo de criação e produção do livro idealiza um leitor. Assim, há o leitor ideal do autor, como também há o leitor ideal do editor, do distribuidor, do livreiro. E lá no fim do processo, há o leitor real, raro e esquivo, soterrado sob uma avalanche infinita de títulos. Vigiando a todos, como uma esfinge hierática e fatal, sorri o Mercado, esse deus insaciável, que controla o Portal da Cidade do Livro e que deseja títulos vistosos, agradáveis, comerciais.
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Por esse motivo, mesmo professores de literatura têm dificuldades em definir conto e crônica.
A principal diferença centra-se na figura do narrador, persona que a mímese instaura. (Reconheço que as teorias mais recentes sobre o poder de duplicação da linguagem — nomear é criar outra realidade — podem ser o calcanhar de Aquiles de uma tese que se centre neste elemento estrutural da narrativa, já que o eu que se diz no texto não é o eu que existe no mundo concreto. Logo, mesmo quando emite uma opinião pessoal, o autor cria um autor que não é o autor real. O argumento, derivado das noções lacanianas, implode a noção de sujeito da enunciação, sobre a qual a crônica se constitui. Para não instaurar o caos, é necessário aceitar que o sujeito da enunciação que fala na crônica é socialmente reconhecível, responde juridicamente pela sua opinião, enquanto o narrador, que se dá a conhecer num conto, é uma máscara, um papel, e nenhum tribunal condenaria um ator por fingir ser. Ao menos não nas democracias ocidentais).
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Davi Arrigucci Jr., por exemplo, estudando Rubem Braga, determinou seus contornos: “um ser moderno, constantemente estremecido pelos choques da novidade, de consumo imediato, a refletir as inquietações do desejo sempre insatisfeito, as violentas transformações sociais e a futilidade e fugacidade da vida moderna”.
Nesse sentido, a crônica seria ainda a cristalização do espírito das grandes metrópoles do capitalismo industrial contemporâneo, como o romance foi a contraparte artística da ascensão da burguesia no século XIX.
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Alguns escritores entram na vida da gente com estardalhaço, arrancam portas, destroem preconceitos, iluminam regiões obscuras de nossa consciência com o poder das tempestades. Outros se instalam aos poucos, como se nos visitassem e a cada visita fossem demorando-se um pouco mais. Em lugar dos raios, trazem uma lâmpada de querosene, ou uma vela.
Friedrich Nietzsche invadiu minha adolescência com violência, estraçalhou minha fé romântica e messiânica. Mas passou, como um vento do Norte, e trouxe depois a longa chuva da melancolia. Dos escombros da fé, tratei de salvar um jeito enviesado de observar o mundo, em que misturo um niilismo reticente a um misticismo inócuo. Penso que o Nada é o destino final de todo o Universo, mas não deixo de parar, de vez em quando, em algumas estalagens que vendem ilusões de eternidade. Saio delas como o turista experimentado, consciente de ter comprado quinquilharias, mas e daí? Nas noites borrascosas, seu brilho falso sobre a cômoda será uma presença, e uma saudade.
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Desde sempre, me recusei a aceitar, no que cabia a minha própria obra, essas categorizações que chamavam de literatura regionalista aquela não produzida fora do eixo Rio-SP e sempre insisti que essa era apenas uma questão econômica, de fluxo de capitais e de informações. Se o dinheiro escorre do centro para a periferia, leva consigo, como numa enxurrada, os valores socioculturais do local de onde flui.
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Usei 43 anos de meus 50 em aprender e, hoje, sou professor. E um professor só pode ensinar depois de gastar seu tempo, sua vida, suas emoções, seus sonhos e suas esperanças em aprender.
E eu aprendi, com os gregos, com os romanos, com os judeus, com os árabes, com os orientais e com os ocidentais, que aprender e ensinar são uma coisa só, que não ensina quem não aprende, e que não aprende quem não ensina, e que só se aprende e se ensina cidadania.
Para a aquisição de informações, para o conhecimento da tradição cultural, basta a pesquisa em bibliotecas e computadores. Para isso, para a simples transmissão de conhecimento, os professores não são mais necessários.
Professores são, sim, necessários para a formação dos valores, da ética, da solidariedade e do respeito, da sensibilidade e da dignidade.
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Entre as muitas teses que se tem a respeito do conto e de seu processo de composição, há uma que em mim se consolida cada vez mais.
Um conto deve ser pensado longamente, mas escrito rapidamente.
Não importa o tempo que se leve depois, a retocá-lo, a reescrevê-lo.
Durante 32 anos (isso mesmo, 32 anos) acalentei a ideia de um conto. E, depois de três décadas a observá-lo, a pensá-lo, arranquei-o de mim. Chama-se A arara vermelha.
Escrever contos é como pintar paredes. Se interrompemos a pintura, para continuá-la num outro dia, ao retomá-la, restarão as marcas das junções. A tinta seca e a tinta molhada não se acertam.
Um conto é um meteorito. É preciso que viaje longamente pelo espaço do imaginário, para incendiar-se, subitamente, ao entrar em contato com a nossa atmosfera.
E essa sensação é impagável: fazer um bom conto, e que agrade, em primeiro lugar, ao exigente leitor que temos dentro de nós. Não venderá nada, não será lido por ninguém, mas não importa.
Toda beleza é inútil. E é bom que seja. É a nossa última trincheira, nesse mundo em que tudo vira mercadoria.
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