Antonio Luiz 20/04/2011
Dois passos à frente, um passo atrás
A capa de "O Castelo das Águias" sugere um livro para moças à moda antiga – e nesse caso as aparências não enganam, não, como diz a canção do Belchior. Embora a linguagem da narrativa seja ágil e elegante, o livro deixa a desejar para quem espera mais que uma bem-comportada aventura sentimental.
A autora Ana Lúcia Merege, bibliotecária carioca, tem no seu currículo (além de contos dispersos em várias antologias e uma obra crítica sobre contos de fadas) dois pequenos romances de fantasia muito interessantes e originais: O Caçador (autopublicado, 100 págs, 2004, republicado em 2009 pela Editora Franco) e O Jogo do Equilíbrio (Fábrica do Livro, 72 págs., 2005), ambos com tramas e protagonistas masculinos incomuns.
No primeiro livro, o herói é aquele caçador que, encarregado pela Rainha Má de matar Branca de Neve e trazer-lhe o coração, desiste de fazê-lo e manda a moça fugir. No conto tradicional, desaparece após enganar a Rainha entregando-lhe um coração de veado, mas no romance de Merege, ele foge para iniciar sua própria jornada através de vários outros contos – As Roupas Novas do Imperador, João e o Pé de Feijão, Cinderela, Bela Adormecida e outros – e constrói sua personalidade e seus próprios sonhos e opiniões enquanto se defronta com outros personagens e seus problemas e questiona os papéis sociais e sexuais estereotipados aos quais se submetem. Ao final, preparado para ser ele mesmo, guiado por sua consciência e não pelas expectativas dos outros, junta os trapinhos com outra personagem mais famosa, também reinterpretada de maneira não ortodoxa.
O segundo, ainda melhor, é a história de um saltimbanco e pai solteiro que vive numa cidade vagamente renascentista e é um artista da corda bamba tanto no palco quanto na vida, pois recorre a todo tipo de expediente para precariamente ganhar a vida, cuidar do filho e reconquistar a mulher que ama. É um personagem vivo e divertido, que foge dos estereótipos dos protagonistas de histórias de fantasia e se relaciona com o sexo oposto de maneira espontânea e autêntica, sem se prender às expectativas tradicionais.
Infelizmente, este terceiro livro não prossegue na mesma linha. O cenário é uma escola de magia instalada no Castelo das Águias, que evoca a Hogwarts de Harry Potter. Situa-se num mundo de fantasia habitado por humanos e por elfos que lembram menos Tolkien do que o RPG D&D: salvo por longevidade, traços delicados e atitudes esnobes, não se distinguem dos humanos com os quais convivem, se casam e conspiram politicamente. Os deuses são os da mitologia nórdica e os nomes lembram a Europa do Norte.
A protagonista, Anna de Bryke, é uma professora órfã e bem jovem (a rigor, adolescente) chamada por essa escola a ensinar as “sagas” (ou seja, literatura) e desde os primeiros capítulos envolve-se com Kieran, o Mestre das Águias, um mago sério e reservado com o dobro de sua idade, que como ele é um humano com pouco sangue élfico em uma escola dominada por elfos.
E é pouco mais que isso: o essencial da história são as expectativas e inseguranças da mocinha que tenta timidamente atrair seu homem dentro das regras usuais do jogo, com uma conclusão muito previsível. O restante – magia, castelo, águias, intriga, vilões – serve apenas para criar obstáculos ou pretextos para o relacionamento e achata-se num cenário bidimensional e pouco memorável de uma história romântica convencional. Particularmente os personagens secundários que, superficialmente caracterizados, são prontamente esquecíveis e não parecem ter vida própria além de suas intervenções na vida do casal. Uma delas é apresentada no início como alguém que será uma grande amiga da protagonista, mas acaba por não fazer nada relevante. Outra, presente quase desde o início, mas pouco mencionada na narrativa, de repente desempenha um papel relativamente importante no final sem que o leitor tenha tido oportunidade de se interessar por ela.
Frustra quem apreciou os livros anteriores da autora. Ainda mais considerando que a heroína é pagã (e devota de Loki, o que há de mais parecido com Exu na mitologia nórdica) num mundo em que o monoteísmo começa a prevalecer e iniciada na “Casa do Lobo” de uma tribo da floresta, com a tatuagem do totem no braço. Seria de se esperar atitudes mais ousadas e afirmativas, mas ela estaria mais à vontade nas páginas de Joaquim Manuel de Macedo ou José de Alencar. Garota acanhada e vacilante, espera do homem todas as iniciativas, “Cai das nuvens” e se dispõe a desistir à primeira vaga suspeita (injustificada, é claro) de que, talvez, ele estivesse noivando com outra.
Paralelamente, há uma trama política: representantes de cidades aliadas à Vrindavahn do Castelo das Águias, liderados pelo vilão, o mago elfo Hillias, querem permissão para levar consigo, permanentemente, algumas das famosas aves da região, que podem ser transformadas temporariamente em armas de guerra por um encanto conhecido do Mestre das Águias e seus discípulos. Kieran não se incomoda em emprestá-las se houver real necessidade, mas recusa-se a cedê-las dessa forma, pois as águias adoecem e morrem quando se tenta mantê-las permanentemente como guerreiras. Hillias está, porém, convencido de que será capaz de resolver o problema e se esforça por persuadir o conselho da cidade. Isso dá a Anna a oportunidade de brilhar aos olhos de seu amado, ao ser enviada por Camdell, o Mentor da escola, a aplicar seu conhecimento de retórica e literatura aos conselheiros e persuadi-los a recusar o pedido dos aliados.
Mas essa trama tem pouca densidade ética, porque o uso das águias e sua transformação em monstros guerreiros não são realmente colocados em questão – apenas a competência de Hillias para fazer isso de maneira permanente. Por tudo que se argumenta, é preciso concluir que, se o vilão realmente demonstrasse essa capacidade, não haveria o que discutir. E uma vez que Anna só se envolve nessa causa depois de se interessar por Kieran e a esquece quando pensa que ele ficou fora de seu alcance, fica-se com a impressão de que a questão das águias, no fundo, pouco lhe interessa a não ser como uma forma de se aproximar do mago.
Para não se dizer que não há nada na vida de Anna além de Kieran, ela parece ter um interesse genuíno por suas aulas sobre as “sagas” e alguns dos alunos chegam a mostrar um pouco de personalidade. Mas à primeira vez em que uma elfa arrogante a censura por ensinar tolas histórias humanas às crianças élficas, Anna chora e foge, querendo abandonar a escola e voltar para sua terra. Depois, muda de ideia e acata a determinação.
Esclarecidos os quiproquós, o Mestre das Águias a pede em casamento – e ela aceita na hora, mesmo sendo óbvio para ela e para o leitor que os dois mal se conhecem. Antes do primeiro beijo, já começa a discutir a data do casamento – não para já, mas para dali a uns três meses, para que a avó possa comparecer. Já devia soar antiquado para as adolescentes dos anos 1950.
O prólogo faz prever um enfrentamento violento, mas este só vai se concretizar quase no final. Não sem incorrer em outros clichês antiquados, inclusive o da troca de desafios prolixos e altissonantes entre inimigos e o do vilão que, no auge do conflito, explica detalhadamente seus planos às vítimas.
E mais uma vez, a suposta filha dos lobos se mostra uma ovelhinha. Sabe usar um arco, mas ao ter um dos vilões sob sua mira, deixa de atirar por medo de ferir o orgulho masculino do amigo que o enfrenta. Sua chegada ao campo de batalha serve para que desempenhe o papel de donzela a ser salva por Kieran daquilo que um cavalheiro vitoriano chamaria de “destino pior que a morte” – e para acalmar o noivo já a ponto de liquidar o vilão. “Por que usar o arco, se você dispõe de armas tão superiores?”, consola-a o Mestre Camdell, cumprimentando-a por ter deixado aos homens o que lhes compete e desempenhado um papel feminino tradicional. É uma pena, mas este romance soa como um passo para trás em uma trajetória literária promissora.