Flávia Menezes 28/01/2024
MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS... OU SERIA COM AS VACAS?
?O remorso de Baltazar Serapião? é o segundo romance publicado em 2006 do poeta, romancista, editor, artista plástico, apresentador de televisão e cantor angolano Valter Hugo Mãe, que nos apresenta uma trama complexa, carregada de temáticas polêmicas tais como o machismo, a misoginia e a zoofilia. Vencedor do Prêmio José Saramago em 2007, o próprio Saramago, após ler o romance, chegou a afirmar a magnitude da obra ao dizer: ?às vezes tive a impressão de assistir a um novo parto da língua portuguesa?.
A história aqui contada traz a família dos sargas, que assim são conhecidos em virtude da extrema afeição que o seu patriarca, afonso Serapião, tem pela sua vaca, denominada sarga, que segundo os boatos que correm por entre os habitantes da comunidade onde vivem, teria ?parido? os seus filhos.
A família, explorada e vivendo em extrema pobreza, serve na casa onde o senhor também se chama Afonso, a quem se refere como d. afonso, e toda essa proximidade promove uma relação especular entre as famílias.
Neste mundo limitado e ausente de sonhos, cuja sua contextualização histórica ocorre na Idade Média (muito embora seu recorte textual seja atemporal), baltazar, o filho mais velho, propõe casamento à moça mais bela do lugar, revelando um amor que transpira o seu instinto de posse, dando início a uma narrativa que será carregada pelos sentimentos de ódio, repulsa e inferiorização da figura feminina.
No olhar dos homens dessa história, assim como a vaca, uma mulher deve ser amestrada por seu marido, que tem por função máxima calar a sua voz, que é burra e repleta de perigos, impondo a ela a força do seu braço todas as vezes em que elas não correspondem ao mínimo anseio de seus maridos.
Cito a vaca, porém a verdade é que a vaca é tratada com mais respeito e cuidados, legando à mulher um lugar bem inferior a um animal irracional. De fato, esse é o lugar concedido aqui às mulheres, cuja função é unicamente atender às necessidades básicas dos homens, seja ela a da nutrição ou do sexo.
As cenas de violência contra a mulher nesta trama são fortes, porém revelam menos o terror por trás do ato, evidenciando bem mais os seus resultados. Percebo que o que se propõe aqui, não é falar propriamente das pulsões e motivações que levam um homem a agredir fisicamente (ou psicologicamente) uma mulher. Mas de mostrar que na força do braço, um homem é capaz de calar uma mulher, e ainda desfigurá-la, tirando dela toda a beleza e encantos naturais que possa ter.
A forma como a desumanização do sujeito feminino é trazido por Valter Hugo Mãe é dolorosa, e repleta de cenas tão brutais que não tem como não provocar e causar assombro à mente feminina. Por isso mesmo, esta não é uma leitura fácil, porque não existe total neutralidade na leitura. Ao contrário, a forma como lemos é imbuída de emoção, até mesmo porque esse jogo de palavras é constituído de significados, capazes de despertar o nosso lado emotivo.
O poeta alemão, Christian Friedrich Hebbel, certa vez disse que ?Numa obra de arte o intelecto faz perguntas, não as responde.? E aqui, o efeito que a literatura provoca na mente do leitor, é muito bem-sucedido nesta premissa, pois ele realmente nos desperta para um universo de questões das quais não teremos nenhuma resposta, ficando totalmente ao nosso critério elaborá-las.
Quando penso sobre isso, e me recordo de todo o caminho feito do início ao fim dessa leitura, me recordando das palavras de Saramago, uma vez que toda a estética da narrativa é pautada na oralidade, com a sua ausência de letras maiúsculas sendo compensada por uma grande gama de simbolismos, eu penso que o lado do artista plástico de Mãe é inerente ao seu papel como escritor.
O que quero dizer com isso é que a literatura também é arte, e sendo arte, ela não está longe da forma como as pinturas são insufladas de significados que nem sempre se traduzem por linhas claras.
Quando comparamos um quadro pintado pelo impressionista francês Oscar-Claude Monet que, mesmo com suas pinceladas rápidas e soltas, e contornos pouco nítidos e sombras mais luminosas, ainda assim consegue transpor para a sua obra uma paisagem ou figura humana compreensível e repleta de beleza, com um quadro do pintor cubista espanhol Pablo Ruiz Picasso, veremos neste último um rompimento com a estética e a representação verossímil dos objetos, nos fazendo perceber que a arte pode ser diferente porque não existe um único prisma de olhar e apenas uma forma de transpor para a linguagem escrita uma mesma questão.
Algo que me remete ?A besta humana" do escritor francês Émile Zola, que também aborda a agressividade masculina transportada para atos violentos (especialmente contra mulheres), ser como um quadro do Monet, onde através da sua linguagem escrita repleta de signos e significados, nos revela ao fundo as pulsões que movem a alma humana de uma forma que podemos compreender e sentir com um pouco mais de clareza o que leva um homem a agir de tal forma.
Já Mãe é como um Picasso, onde seus traços disformes, dotados de uma feiura capaz de nos causar aversão, apenas nos provoca, e ainda nos deixa ali, desamparados com nossas mentes repletas de indagações que gritam desesperadamente para que ele (autor) nos tire desse lugar de confusão, e nos forneça explicações que nos faça entender qual a mensagem que existe por trás de tamanha atrocidade.
Mas ele não o fará, e o sentimento que fica é de total abandono. E cabe a cada um de nós ressignificar cada acontecimento contido nesta história conforme a nossa necessidade, já que há aqueles para quem essa obra apenas ficará, sem qualquer intenção de ir além para compreender suas motivações.
Sou do time que aprecia mais as pinturas de Monet. Não porque tenho ânsia por respostas, mas porque tenho plena paixão por ver as pulsões que movem a complexidade da mente humana. E por isso eu quero agradecer à minha amiga Ana de Sá por compartilhar comigo sua visão e conhecimentos sobre o Valter Hugo Mãe, e pela paciência para ouvir meus áudios (podcasts), me ajudando a ver além dos ?Monets? para penetrar a alma labiríntica dos ?Picassos?.
?o amor é uma maldade dos homens, porque junta as mulheres aos homens numa direcção que só a eles compete. mas não somos o mal por isso, que em correspondência para nos prejudicar está a voz das mulheres. a maldade dos homens é igual à voz das mulheres. por isso o nosso pai se mirra de lhe faltar um vício ao qual se habituou. como se estivesse habituado a um prejuízo e gostasse dele e quisesse padecer dele por toda a vida. assim eu também, meu amigo, assim eu também, a toda a hora, só me dá ganas de estar com a minha ermesinda e fazer vida toda ser o seu marido e mais nada.?