O remorso de Baltazar Serapião

O remorso de Baltazar Serapião Valter Hugo Mãe




Resenhas - O Remorso de Baltazar Serapião


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Flávia Menezes 28/01/2024

MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS... OU SERIA COM AS VACAS?
?O remorso de Baltazar Serapião? é o segundo romance publicado em 2006 do poeta, romancista, editor, artista plástico, apresentador de televisão e cantor angolano Valter Hugo Mãe, que nos apresenta uma trama complexa, carregada de temáticas polêmicas tais como o machismo, a misoginia e a zoofilia. Vencedor do Prêmio José Saramago em 2007, o próprio Saramago, após ler o romance, chegou a afirmar a magnitude da obra ao dizer: ?às vezes tive a impressão de assistir a um novo parto da língua portuguesa?.

A história aqui contada traz a família dos sargas, que assim são conhecidos em virtude da extrema afeição que o seu patriarca, afonso Serapião, tem pela sua vaca, denominada sarga, que segundo os boatos que correm por entre os habitantes da comunidade onde vivem, teria ?parido? os seus filhos.

A família, explorada e vivendo em extrema pobreza, serve na casa onde o senhor também se chama Afonso, a quem se refere como d. afonso, e toda essa proximidade promove uma relação especular entre as famílias.

Neste mundo limitado e ausente de sonhos, cuja sua contextualização histórica ocorre na Idade Média (muito embora seu recorte textual seja atemporal), baltazar, o filho mais velho, propõe casamento à moça mais bela do lugar, revelando um amor que transpira o seu instinto de posse, dando início a uma narrativa que será carregada pelos sentimentos de ódio, repulsa e inferiorização da figura feminina.

No olhar dos homens dessa história, assim como a vaca, uma mulher deve ser amestrada por seu marido, que tem por função máxima calar a sua voz, que é burra e repleta de perigos, impondo a ela a força do seu braço todas as vezes em que elas não correspondem ao mínimo anseio de seus maridos.

Cito a vaca, porém a verdade é que a vaca é tratada com mais respeito e cuidados, legando à mulher um lugar bem inferior a um animal irracional. De fato, esse é o lugar concedido aqui às mulheres, cuja função é unicamente atender às necessidades básicas dos homens, seja ela a da nutrição ou do sexo.

As cenas de violência contra a mulher nesta trama são fortes, porém revelam menos o terror por trás do ato, evidenciando bem mais os seus resultados. Percebo que o que se propõe aqui, não é falar propriamente das pulsões e motivações que levam um homem a agredir fisicamente (ou psicologicamente) uma mulher. Mas de mostrar que na força do braço, um homem é capaz de calar uma mulher, e ainda desfigurá-la, tirando dela toda a beleza e encantos naturais que possa ter.

A forma como a desumanização do sujeito feminino é trazido por Valter Hugo Mãe é dolorosa, e repleta de cenas tão brutais que não tem como não provocar e causar assombro à mente feminina. Por isso mesmo, esta não é uma leitura fácil, porque não existe total neutralidade na leitura. Ao contrário, a forma como lemos é imbuída de emoção, até mesmo porque esse jogo de palavras é constituído de significados, capazes de despertar o nosso lado emotivo.

O poeta alemão, Christian Friedrich Hebbel, certa vez disse que ?Numa obra de arte o intelecto faz perguntas, não as responde.? E aqui, o efeito que a literatura provoca na mente do leitor, é muito bem-sucedido nesta premissa, pois ele realmente nos desperta para um universo de questões das quais não teremos nenhuma resposta, ficando totalmente ao nosso critério elaborá-las.

Quando penso sobre isso, e me recordo de todo o caminho feito do início ao fim dessa leitura, me recordando das palavras de Saramago, uma vez que toda a estética da narrativa é pautada na oralidade, com a sua ausência de letras maiúsculas sendo compensada por uma grande gama de simbolismos, eu penso que o lado do artista plástico de Mãe é inerente ao seu papel como escritor.

O que quero dizer com isso é que a literatura também é arte, e sendo arte, ela não está longe da forma como as pinturas são insufladas de significados que nem sempre se traduzem por linhas claras.

Quando comparamos um quadro pintado pelo impressionista francês Oscar-Claude Monet que, mesmo com suas pinceladas rápidas e soltas, e contornos pouco nítidos e sombras mais luminosas, ainda assim consegue transpor para a sua obra uma paisagem ou figura humana compreensível e repleta de beleza, com um quadro do pintor cubista espanhol Pablo Ruiz Picasso, veremos neste último um rompimento com a estética e a representação verossímil dos objetos, nos fazendo perceber que a arte pode ser diferente porque não existe um único prisma de olhar e apenas uma forma de transpor para a linguagem escrita uma mesma questão.

Algo que me remete ?A besta humana" do escritor francês Émile Zola, que também aborda a agressividade masculina transportada para atos violentos (especialmente contra mulheres), ser como um quadro do Monet, onde através da sua linguagem escrita repleta de signos e significados, nos revela ao fundo as pulsões que movem a alma humana de uma forma que podemos compreender e sentir com um pouco mais de clareza o que leva um homem a agir de tal forma.

Já Mãe é como um Picasso, onde seus traços disformes, dotados de uma feiura capaz de nos causar aversão, apenas nos provoca, e ainda nos deixa ali, desamparados com nossas mentes repletas de indagações que gritam desesperadamente para que ele (autor) nos tire desse lugar de confusão, e nos forneça explicações que nos faça entender qual a mensagem que existe por trás de tamanha atrocidade.

Mas ele não o fará, e o sentimento que fica é de total abandono. E cabe a cada um de nós ressignificar cada acontecimento contido nesta história conforme a nossa necessidade, já que há aqueles para quem essa obra apenas ficará, sem qualquer intenção de ir além para compreender suas motivações.

Sou do time que aprecia mais as pinturas de Monet. Não porque tenho ânsia por respostas, mas porque tenho plena paixão por ver as pulsões que movem a complexidade da mente humana. E por isso eu quero agradecer à minha amiga Ana de Sá por compartilhar comigo sua visão e conhecimentos sobre o Valter Hugo Mãe, e pela paciência para ouvir meus áudios (podcasts), me ajudando a ver além dos ?Monets? para penetrar a alma labiríntica dos ?Picassos?.

?o amor é uma maldade dos homens, porque junta as mulheres aos homens numa direcção que só a eles compete. mas não somos o mal por isso, que em correspondência para nos prejudicar está a voz das mulheres. a maldade dos homens é igual à voz das mulheres. por isso o nosso pai se mirra de lhe faltar um vício ao qual se habituou. como se estivesse habituado a um prejuízo e gostasse dele e quisesse padecer dele por toda a vida. assim eu também, meu amigo, assim eu também, a toda a hora, só me dá ganas de estar com a minha ermesinda e fazer vida toda ser o seu marido e mais nada.?
Fabio.Nunes 28/01/2024minha estante
Verdadeiro tapa com luva de pelica kkk. Queria falar mal de um livro assim. Qnd eu crescer e for mais bonito, quem sabe.


Flávia Menezes 28/01/2024minha estante
Fábio, meu querido, foi o efeito do Mãe! ?
Mas muito gentil da sua parte dizer isso, até porque você é resenhista sem igual, que me faz sempre querer ler o que você leu. ???


Craotchky 28/01/2024minha estante
Não tenho nem competência de comentar seu texto. Achei excelente a citação de Saramago que você inseriu no primeiro parágrafo. Realmente é uma frase muito instigante. De outra parte, confesso que fiquei curioso com os mencionados aúdios/podcasts trocados com a Ana. Chegou mesmo a me passar pela cabeça que seria interessante algum dia semear a ideia de um grupo virtual composto por uma turminha de skoobers interessados(as)...


Flávia Menezes 28/01/2024minha estante
Ai, Filipe! Acho que esses podcasts foram bem nonclassified, porque a divagação foi longe nessa polêmica desse livro. ?? Mas concordo! Um grupinho de skoobers pra fazer troca de áudios/podcasts sobre livros seria muito interessante (e divertido!). ???


Fabio.Nunes 29/01/2024minha estante
Apoio total hein


Flávia Menezes 29/01/2024minha estante
Fábio, mas vai ter que ser igual a Ana: sem medo dos podcasts! ???


Craotchky 29/01/2024minha estante
Bem, okay então. Ter vocês dois, engajados como são, já é um belo início.


Flávia Menezes 29/01/2024minha estante
Perfeito!!! ?


Talys 29/01/2024minha estante
Pela forma poética que peguei um certo ranço da escrita do VHM e depois de ler Mia Couto! Mas ainda quero muito ler esse livro!


Flávia Menezes 29/01/2024minha estante
Talys, eu te entendo!! E esse livro é muito mais estética do que conteúdo. Até porque o conteúdo é tão repetitivo, que a vontade de abandonar na metade é grande. Mas me diz? você não gostou de Mia Couto? Ainda não li nada, mas já tinha separado alguns para conhecer em breve.


Talys 29/01/2024minha estante
Amei Mia Couto, exatamente por fazer uma comparação entre ambos, vejo que Mia consegue aprimorar a linguagem poética de uma forma mais coesa, caprichada, com mais requinte e elegancia, sem tanras firulas... mas gosto muito da figura do VHM.


Flávia Menezes 30/01/2024minha estante
Talys, você me deixou ainda mais ansiosa pra ler Mia Couto! Estou doida pra conhecer essa escrita e que bom saber que é maravilhosa!


Ana Sá 30/01/2024minha estante
Flávia, que lindeza de resenha!! Fiquei lisonjeada de ser mencionada nela, mas confesso que pensei: "oxe, eu não tenho nada a ver com isso, essa leitura primorosa é 100% de sua responsabilidade!" rs. Que paralelos bons vc fez!

Foi muito boa a nossa troca, como sempre!! ? Este livro nos exige demais, fica mais fácil se seguimos juntas! Estou quase terminando e vou dar meu tapa sem a luva de pelica mesmo, porque tô descrente do rumo que as coisas estão tomando! hahaha Mas muuito feliz do empurrãozinho que vc me deu pra não desistir, tornando o livro mais interessante! :)

Parabéns de novo por esta resenha em forma de arte!


Ana Sá 30/01/2024minha estante
Talys, eu gostei de muitos livros do VHM, mas este, em especial, me fez ter vontade de relê-los e ver se não deixei fio solto viu... Que coisa estranha este romance!haha


Flávia Menezes 30/01/2024minha estante
Ana amiga, mas é claro que você tem a ver sim! Quanta coisa boa você me fez pensar!!
Obrigada minha amiga pela companhia e toda conversa boa que tivemos! Quantos áudios cheios de divagações que nunca me esquecerei! Foi bom demais!! ?
E muito obrigada pelas palavras! Vindo de você amiga, eu fico imensamente lisonjeada!! ??


Talys 30/01/2024minha estante
Tenho aquela coleção do VHM da cosac, li A desumanização, que eu amo e o filho de mil homens que eu gostei, depois li homens imprudentimente poéticos e não gostei. Mas vou voltar a ler outras coisas dele! Este em especial está no meu radar a um bom tempo! ?




edu basílio 05/01/2021

"já nem sabíamos como nos aleijáramos"

após "o filho de mil homens", eu soube que iria desbravar toda a obra em prosa de valter hugo mãe. escolhi fazer a minha segunda incursão em sua obra com "o remorso de baltazar serapião". encontrei, mais uma vez, o estilo linguístico belamente rebuscado, flertando com o português arcaico, na fronteira tênue entre poesia e prosa... e então VHM se tornou oficialmente meu primeiro crush literário de 2021.

mas se o esmero e a inventividade linguísticos nesses dois romances são os mesmos, no enredo de "o remorso de baltazar serapião" encontramos o extremo oposto do experimentado em "o filho de mil homens": lá, são 200 páginas de ternura, acolhimento e celebração do amor. aqui, uma sucessão de crueldades sem precedentes para mim.

naquilo que parece ser uma propriedade feudal portuguesa na idade média, uma família de servos vive subjugada ao senhor das terras, em obediência quase catatônica, com bestialidade comparável à de sua vaca sarga, de idade indefinida e cujo nome foi ironicamente estendido à família. nem eles mesmos sabem mais que um dia foram os serapião. são os sarga. despojados de seu próprio nome (em prol do de uma vaca), são despojados do último traço de identidade humana.

e no tempo e no território onde habitam os sarga, é um fato estabelecido e aceito que mulheres têm pouco mais inteligência que um toco de pau (se tiverem alguma). mulheres podem ser queimadas vivas (e talvez sobreviver) ou terem seu útero dilacerado (e com frequência morrer). mulheres podem ter pés quebrados e olhos arrancados (e está tudo bem). mulheres são orifícios para os homens se saciarem de sexo, e os senhores de terras têm esse direito sobre esposas e filhas de seus servos -- afinal, terra, flora, fauna (humanos inclusos), tudo ali são posses suas.

talvez um requisito chave para apreciar o impacto da obra seja lê-la em um momento "de bem consigo mesmo", pois estando emocionalmente fragilizados dificilmente suportaremos a crueldade de que os sarga são tanto vítimas quanto perpetradores, esmiuçada crua e brutalmente da primeira à última página. ainda, é preciso estar atento ao caráter multicamadas do romance, pois não foi na mais externa delas que o autor depositou sua pesada crítica contra a misoginia, o feminicídio e a bajulação.

em meio a toda essa treva intelectual e esses suplícios físicos em que vagam as personagens, vale finalizar com uma "nota-pontinho-de-luz" sobre aldegundes, irmão caçula do protagonista, e que encontra na arte -- ainda que acidental e fugazmente -- um escape para dar vazão a seu luto, encantar pessoas e vislumbrar alguma ascensão social... talvez ele personifique uma metáfora de VHM para assinalar a persistência do belo em se manifestar, mesmo quando todo o resto ao redor são puras boçalidade e selvageria.

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Ana Sá 21/03/2024

Valter Hugo Mãe não pegou leve comigo neste livro, então eu também não vou facilitar a vida dele na minha resenha não!
Você é daquelas pessoas que dizem "eu leria até a lista de supermercado do Valter Hugo Mãe"? Se sim, vem comigo que a gente precisa conversar!

Por duas vezes, nesses "encontros com autor", ouvi o Valter Hugo Mãe (VHM) comentar que, entre os leitores que se gabam de ter lido "todos" os seus livros, raros são aqueles que incluem "O remorso de Baltazar Serapião" nesta lista. Ou vão adiando a leitura ou a abandonam na metade. Bom, hoje eu diria "que sorte a dele", pois de tudo que já li do autor (e não foi pouco, dos romances li quase todos!), este título aqui é o último que eu recomendaria.

Vencedor do Prêmio Saramago em 2007, com direito a elogios de peso do próprio ganhador do Nobel, "O remorso..." narra a história dos "sargas", assim conhecidos devido à intensa afeição e proximidade estabelecidas pela família, mas sobretudo pelo patriarca, com uma vaca de mesmo nome. O animal serve muitas vezes de instrumento de animalização das personagens, principalmente das personagens femininas. Ambientada numa Idade Média ficcional e um pouco fantasiosa/fantástica, a narrativa retrata relações sociais de servidão marcadas pela verticalidade e opressão que separam os senhores da terra e a família de trabalhadores rurais.

A comparação-sobreposição mulher/vaca não é aleatória ou secundária na obra. A extrema violência e subordinação das figuras femininas são centrais no livro, sendo a linguagem tão brutal quanto o tema. Pensa num discurso ou numa cena de violência contra a mulher de embrulhar o estômago, então multiplica por dois, três, quatro, pois quando menos se espera, lá volta a porrada de novo, por vezes supreendentemente piorada ou... apenas repetitiva! Um romance reiteradamente misógino, sem explicação pra tanta redundância no quesito tiro, porrada, bomba e ofensas! E é por isso que não gostei do livro? Não!

Sou daquelas que acredita que a literatura pode tudo, inclusive retratar brilhantemente o grotesco, o repulsivo. Pode dar tudo errado nesse caminho, mas a literatura pode tentar tudo! Eu também acredito que uma obra literária não tem o dever/compromisso de ser didática, recatada e do lar. Às vezes a arte é apenas o que é, finita em si mesma. Mas tem um ponto do qual eu não abro mão: um texto precisa ser autossuficiente - com exceção óbvia daqueles que claramente pretendem deixar um fio solto para a própria leitora conduzir. E na minha desumilde opinião, é aqui que reside o problema de "O remorso...": não é uma obra aberta, mas tampouco ela se fecha, já que seu eixo liga nada a lugar nenhum!

O romance apresenta um núcleo familiar e social muito bem delimitado, com personagens bem apresentadas e definidas (tenho um porém sobre o protagonista, mas...), e dinâmicas dotadas de especificidade de contexto e (até certo ponto) de verossimilhança. É a típica narrativa que nos promete começo, meio e fim. O problema é justamente que, do começo ao fim, ou este retrato da violência sobrou ou ele simplesmente não se justificou - o final então, misericórdia, foi pavoroso! Entendo que a única saída possível seria um desfecho tão brutal quanto o restante do livro, mas considerei o final brutalmente... patético! No fim, tomei um monte de soco na cara e no estômago e estou até agora sem entender o porquê! Mais desnorteada do que eu, só o Bambam depois da luta com o Popó!

No discurso de premiação do livro, Saramago afirmou que "a época que se reconstitui [em "O remorso..."] é uma certa Idade Média que está ausente dos livros que dela falam e das ficções que sobre esta época se armaram. Nós, [...] os portugueses, gostamos [...] dessa espécie de Idade Média desinfectada, limpa". Quem sou eu na fila do pão literário pra contrariar este senhor, mas já contrariando: se é sedutor para nós, leitoras, observar a influência do estilo de Saramago na escrita de VHM neste romance, imagina para o próprio? (Aliás, em certa medida, ele assume no discurso ter gostado de reconhecer um pupilo ali...). De fato, não apenas na linguagem, mas também a própria composição de um ambiente rural lusitano ecoa qualquer coisa que já vimos nas linhas do vencedor do Nobel. Ok, concordo que é interessante nos depararmos com uma obra portuguesa que rompe com a romantização de uma Idade Média narrada pela nobreza, mas será que do outro lado, em seu oposto, o que resta é apenas uma total selvageria, pura e simplória?

É óbvio que enxergo pontos fortes no livro, e isso me entristece de vez, já que foram eles que me fizeram persistir até aquele final sem pé nem cabeça. O próprio incômodo e a respectiva repulsa que a escrita de VHM nos causa já é um mérito, pois não é fácil mexer com o leitor no nível que este livro consegue. Ninguém sai indiferente ao remorso do Serapião... Eu também diria que a construção das personagens e as relações estabelecidas entre elas têm seus pontos altos, pois também não é simples fundir ambiente-personagem ou personagem-personagem do jeito que o romance consegue fazer em alguns capítulos. Mas a questão pra mim é que faltou uma cola coesiva que harmonizasse tudo isso ao protagonismo da violência e da misoginia. Não convence, sabe?

Eu não me incomodo com livros custosos se o meu esforço é recompensado a qualquer nível (estético, ético, narrativo, temático, lúdico...). Aqui, infelizmente, fechei o livro com a sensação de ter lido a violência pela violência, sem identificar um projeto de texto que desse liga e fundamento a tudo que a leitora precisa heroicamente encarar. No meio da narrativa eu cheguei a ter grandes esperanças (sobretudo pelo encaminhamento inesperado/original que é dado à trajetória do irmão do protagonista, que começa a se aproximar da arte/pintura, eu adorei essa parte!), mas então veio aquele desfecho e destruiu tudo outra vez e de vez... Meu desconforto com a extrema violência ficou em segundo plano de tanto que a história em si foi ficando cada vez mais descabida... Para fazer uso da linguagem do romance, o final é de cair o c* da bunda! Foi o famoso: o começo estava ruim e o final foi igual ao começo!

Bom, se você é daquelas pessoas que dizem "eu leria até a lista de supermercado do Valter Hugo Mãe" e chegou até aqui, me conta:

Você leu "O Remorso…"? Sim? O que você achou dele se comparado com os outros livros do autor?

Ah, não leu? E pretende ler? Xii... Não diga depois que eu não avisei (ou, se for o caso, volta aqui pra me contrariar, eu vou adorar!).

Obs. 1: Meu favorito do VHM continua sendo "A máquina de fazer espanhóis" (2010)... O único romance que estou devendo agora é "As doenças do Brasil" (2021), o qual me recuso a ler pois sei que ele tem tudo pra dar ruim, a sinopse já é tão... blé! Este eu vou passar!

Obs. 2: Do mesmo prêmio Saramago, e com uma atmosfera um pouquinho parecida, continuo preferindo "Os Malaquias" (2010), da nossa maravilhosa Andréa del Fuego.
Flávia Menezes 21/03/2024minha estante
Amiga, que resenha foi essa? ?
Isso sim foi tiro, porrada e bomba mas no melhor sentido possível! Porque ler uma resenha tão honesta, detalhada e que vai no cerne da questão é um presente! Especialmente para alguém assim como eu, que também passei pelo sofrimento de ler esse livro. Sua resenha salvou a experiência toda!
Mas não é surpresa, porque tudo isso eu tive a honra de poder ouvir durante nossas trocas no momento da leitura.
Parabéns, amiga! Perfeição temos por aqui! ?


Vania.Cristina 21/03/2024minha estante
Muito bem colocado Ana, parabéns pela resenha. Críticas objetivas, muito bem colocadas. Do autor, só li Filho de Mil Homens e amei. Mas tenho receio de ler outras coisas dele porque ouço muitas críticas ruins. Máquina de Fazer Espanhóis também está no meu radar.


Ana Sá 22/03/2024minha estante
Flávia, foi bom demais ter essa troca de desabafos literários com você!! Também melhorou muito minha experiência de leitura! Obrigada ??


Ana Sá 22/03/2024minha estante
Obrigada, Vania! ?

Olha, eu só tive experiência boa com o VHM, este livro aqui foi fora da curva... Nos outros romances famosinhos dele pode ir sem medo, nenhum será custoso como esse, eu garanto!! haha

Vou adorar saber sua opinião sobre "A máquina...". Inclusive já está na hora de fazer essa releitura, lembro de ter amado, mas os pormenores aos poucos vão fugindo da memória! rs Mas do que lembro, lembro com saudade! :)


Paulo Sousa 24/03/2024minha estante
dele, só li ?o filho de mil homens? e aquele pequeno sobre a avó, e adorei! mas não sei se seria um autor para ler de forma recorrente?enfim?


Carolina.Gomes 26/03/2024minha estante
Boa, pq eu já pulo esse. Estou traumatizada depois do último.


Ana Sá 27/03/2024minha estante
Paulo, calhou de eu ler uma sequência muito interessante de livros dele... Daí a decepção foi inevitavelmente grande agora! rs


Ana Sá 27/03/2024minha estante
Carolina, fechei minha opinião sobre "As doenças..." com seus históricos também! Uma mão lava a outra!! haha


Jacy.Antunes 31/03/2024minha estante
Ana, você é uma ótima referência dos escritores portugueses e vou colocar a


Jacy.Antunes 31/03/2024minha estante
... a Maq de fazer Espanhóis na lista .


Ana Sá 31/03/2024minha estante
Jacy, vc é generosa! Eu é que estou super de olho nas suas leituras luso deste ano! Estou acompanhando com gosto!




Paty 28/05/2014

É um livro sobre os nossos monstros e fantasmas. É real, medonho, onde matar uma mulher é castigo quase divino. A força, a violência da escrita, a desordem emocional que provoca no leitor, o desmascarar de fantasmas que persistem na memória coletiva portuguesa, assaltam violentamente a mente de quem lê.

Saramago não andava longe da verdade quando afirmou que este livro era um verdadeiro tsunami na literatura portuguesa.
Nanci 28/05/2014minha estante
Paty:

Esse é o único do VHM que não li... Sua resenha é um convite: vou tratar de ler "O remorso" em breve.


Regente Deo 07/07/2014minha estante
A arte da concisão é para poucos.
Ótima resenha.


Paty 07/07/2014minha estante
;)




Diego 03/01/2022

maneirismos?
Escrevi o título começando por minúscula para espelhar um dos maneirismos do autor.
Ele subverte regras da língua portuguesa de uma forma que me parece meio pueril, mas é sua marca registrada. Por outro lado, a forma aproxima um pouco mais a prosa da poesia.
Festejado por Saramago, talvez em grande parte pelo citado caráter subversivo, é um autor que creio se deve conhecer, até para que se possa formar opinião mais fundamentada sobre ele.
O livro em si é uma sucessão de episódios dolorosos de ler. Descrição de parte da vida de um homem, digamos, não muito equilibrado?
Foi uma leitura estranha, que me incomodou, mas interessou.
Comecei a ler baseado em informação da orelha do livro que o comparava rapidamente a Guimarães Rosa. Talvez esse tenha sido o erro: as expectativas foram altas demais.
Não sei se teria chegado ao fim caso fosse obra mais longa. O tamanho é adequado.
(Opiniões de um leitor bastante leigo.)
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Bookster Pedro Pacifico 01/03/2020

O remorso de Baltazar Serapião, Valter Hugo Mãe - Nota 10/10
Mas uma leitura incrível de um dos meus autores favoritos. Dessa vez, VHM nos apresenta um romance frio e cruel, abordando a natureza humana em sua forma selvagem. Literalmente selvagem, já que as personagens chegam até mesmo a apresentar características de animais. Ambientado na Idade Média, a obra traz como protagonista Baltazar Serapião, o primogênito dos Sargas, uma família pobre, sofrida e com uma história desastrosa. Pai, mãe, vaca e irmão moram todos numa pequena e miserável cabana a uma certa distância da Casa Grande. Tamanha a “animalização” dos Sargas, que eles são conhecidos por serem “nascidos de pai e vaca”. É impressionante como VHM consegue levar os sentimentos das personagens em seu nível mais intenso. Com sua escrita genial e extremamente poética, o autor constrói uma narrativa que incomoda, abordando a violência e submissão da mulher - com passagens que chegam até mesmo a embrulhar o estômago. No entanto, até nesses momentos mais cruéis, o autor consegue manter o seu lirismo inigualável… Não é por outro motivo que Saramago qualificou esse livro como um “tsunami literário”. Deixo aqui uma dica: para quem nunca leu VHM, não sugiro começar com essa obra. Fora isso, recomendo demais!

site: https://www.instagram.com/book.ster
Flávia Menezes 28/01/2024minha estante
Verdade! Quem nunca leu, melhor nem começar por esse até porque os efeitos desta leitura despertam muitas emoções que em cada um poderá ser bem diferente!




Helissa 25/09/2022

A violência que ainda temos
Esse livro costuma gerar polêmica por causa do sei conteúdo. Afinal, a denúncia aqui realizada percorre um caminho inusitado.
Mas vale a leitura. Difícil, penosa leitura. Mas vale.
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Mag 19/02/2011

O remorso de Baltazar Serapião
O livro narra as desventuras de uma família subjugada a um poderoso Senhor, Dom Afonso. Embora não encontremos nenhuma referência ao local nem a época em que se passa a história, percebemos se tratar de alguma localização nos ermos da Idade Média.
A família de Baltazar Serapião, mais conhecida como "os Sargas" (alcunha que deriva do nome da vaca a quem os pertence) é encaregada por executar diversos serviços a Dom Afonso, quer sejam trabalhos do campo ou obrigações sexuais, como é o caso de Brunilde, irmã mais nova de Baltazar, que foi entregue no início da adolescência para satisfazer os desejos carnais de D. Afonso.
Pai, mãe, vaca e irmão, moram todos numa pequena e miserável cabana a uma certa distância da Casa Grande. No meio de uma dura rotina, Baltazar encanta-se pela beleza da jovem Ermesinda como quem se casa tempos depois; mais uma a ir morar no casebre dos Sargas.
Quando a pedido de D. Afonso, Ermesinda passa a visitá-lo todas as manhãs na Casa Grande, Baltazar é tomado por furiosos surtos de ciúmes, e impotente diante do seu Senhor, passa a castigar Ermesinda rotineiramente.
Este é apenas o ponto de partida para entrarmos em contato com uma série de eventos grotescos, ambientado numa sociedade onde as mulheres tem menos valor que as vacas, onde a educação através da punição extrema são naturalmente aceitas e tratadas com indiferença. Os personagens que aqui perpetram os crimes mais hediondos parecem não carregar o peso da culpa, pautando-se na ideia de que todas as mulheres são bruxas e responsáveis por todas as ruínas existentes.
O livro é todo escrito com letras minúsculas, inclusive os nomes próprios. Seu texto é carregado de elementos da literatura barroca, com figuras de linguagem em excesso, formado por uma espécie de anacoluto em toda sua estrutura; e também possui fortes traços do realismo fantástico presente na literatura de cordel.
Valter Hugo Mãe escreve de tal maneira, que às vezes eu tinha impressão de não estar lendo em português, embora isso não comprometa em nada a fluência do texto; e o mais interessante é que diante de tantos eventos perversos, onde a figura feminina é exageradamente usurpada, o autor nos faz enxergar uma certa comicidade nesses comportamentos animalescos e primitivos. Mas sem dúvida é uma obra que traz à tona um grande desconforto...
Margot 16/02/2011minha estante
Baltasar é o nome do personagem de um dos melhores livros que já li: "Memorial do Convento" - José Saramago. Embora o enredo desse livro que você resenhou nada tenha a ver com a obra de Saramago, senti imensa vontade de lê-lo, para ter contato com um personagem homônimo e daí traçar possíveis paralelos.
Gostei muito da resenha, está muito bem escrita e desperta muito a curiosidade de ler o livro. Espero lê-lo o quanto antes.


Tatiane 14/01/2019minha estante
Comecei a ler este livro hoje. É o 6o seguido de Valter Hugo Mãe que leio, de dezembro para cá. Sua resenha me deixou com mais água na boca para lê-lo vorazmente.


Mag 04/02/2019minha estante
Que bom que gostou, Tatiane. Depois me diz o que achou do livro. Um abraço!


Tatiane 06/02/2019minha estante
Gostei muito e estou destroçada até agora. Também fiz uma resenha sobre ele. Aqui no Skoob e em meu blog tatiandoavida.com ? Já comecei a ler o último que falta para mim de Hugo Mãe: "homens imprudentemente poéticos".




André Vedder 01/01/2023

Sem remorsos de ler VHM
Desde que me encantei com "O Filho de Mil Homens", VHM tem sido um dos escritores mais apreciados por mim e a cada obra que leio, aumenta minha admiração pelo autor. Pois além da sua originalidade, ele consegue mesclar temas difíceis e delicados com uma escrita lírica e bonita, mas sem floreios desnecessários. E o maior exemplo está justamente aqui em "O Remorso de Baltazar Serapião", onde com uma narrativa pesadíssima que se passa num mundo recheado de misoginia, VHM brilha com sua escrita ímpar.

"ela haveria de sentir por mim amor, como às mulheres era competido, e viveria nessa ilusão, enganada na cabeça para me garantir a propriedade do corpo."

".e lho disse assim, depender de mim será só digna sua pessoa, posta sobre meus braços como anjo que o céu me empresta, e deus terá sobre nós um gosto de ver e ouvir que inventará beleza a partir de nós para retribuir aos outros."
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Claudio 19/12/2022

Excelente! Imperdível para fãs de vhm
O livro que pôs vhm em evidência com toda razão. Ele apresenta sua escrita sofisticada, com uma história que nos transporta a tempos remotos com a maestria do gênio que ele é.
A brutalidade e crueza dos personagens e o enredo fantástico fazem deste um livro imperdível!
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Mariane Bach 18/05/2022

Difícil de digerir e não gostei.
Recentemente, eu escrevi uma resenha para "O filho de mil homens", também de Valter Hugo Mãe, a qual dei o título de "O livro mais bonito do mundo", pelo encantamento que me causou. Muito diferentemente, com "O remorso de Baltazar Serapião", teria que chamar a resenha de "o livro mais cruel ou grotesco do mundo".

Retratado numa provável Idade Média, a desumanização, a misoginia e a crueldade são tantas, que por vezes foi árduo seguir lendo. Outro fator que dificultou minha leitura: achei o livro chato. Eu tinha altas expectativas depois do comentário de Saramago, mas simplesmente não me cativou e tive que me forçar a terminar de ler.
Diego 19/05/2022minha estante
Também não gostei.




Juliana.Franz 15/09/2020

Gostei do livro, mas confesso que me deixou extremamente revoltada com certas atitudes machistas que acontecem com as mulheres da narrativa, e o pior é que muitas dessas atitudes são atuais. Vale muito a pena ler o livro e refletir sobre esses comportamentos que precisam mudar..
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ladyamnesia 22/04/2011

é como se manoel de barros acordasse possuído pelo espírito de saramago a escrever um livro de guimarães rosa.
Guilherme 24/06/2011minha estante
Que coisa alquímica, não concorda?




Alexandre Kovacs / Mundo de K 21/04/2011

valter hugo mãe - o remorso de baltazar serapião
Editora 34 - 200 páginas - Edição apoiada pela Direção Geral do Livro e das Bibliotecas/Portugal - Lançado no Brasil em 2010.

O jovem escritor angolano de 39 anos, radicado em Portugal, valter hugo mãe (assim mesmo em minúsculas como ele gosta de escrever) é um dos nomes mais elogiados da literatura portuguesa contemporânea, principalmente pelo fato de ter sido o vencedor do Prêmio Literário José Saramago em 2007, com este mesmo romance (único lançado no Brasil até o momento) e também por ter sido definido pelo próprio Saramago como um "tsunami literário". Presença confirmada na FLIP 2011, quando será lançado pela editora Cosac Naify o seu romance de 2010: "a máquina de fazer espanhóis", valter hugo mãe, além de romancista é também poeta, editor, artista plástico, vocalista da banda Governo e DJ nas horas vagas. Como se não bastassem tantas atividades, o autor mantém um blog: www.casadeosso.blogspot.com e uma página da sua banda no My Space: http://www.myspace.com/ogoverno.

Ao lermos "o remorso de baltazar serapião" percebemos imediatamente uma novidade, seja pela utilização da linguagem intuitiva e original que cria o efeito de um português arcaico ou pela pontuação não convencional que acaba inventando novos ritmos, o autor apresenta a sua fábula que, apesar de não ser ambientada em uma época ou local definidos, lembra muito o feudalismo europeu da idade média. Uma família de camponeses é explorada pelo senhor feudal que consome a vida de homens e mulheres em um cotidiano brutal de ignorância e falta de esperança. Por sinal as mulheres representam um foco central no romance, começando pela linda ermesinda que conquista o amor de baltazar, a sensual teresa diaba ou a bruxa representada pela terrível mulher queimada. Personagem fundamental é a sarga, uma vaca que é tratada como animal doméstico pela família e acompanha toda a narrativa. A família serapião passa a ser conhecida como os "sargas", sendo que a perda do nome, segundo o próprio autor explica em entrevista ao Globo, representa a anulação completa de uma pessoa.

Inconsciente, sobrenatural ou intuitivo, o estilo de valter hugo mãe revela o que existe de melhor e pior no homem. Difícil não cair na tentação de comparar o jovem autor e sua aventura experimental literária com nomes do nível de Guimarães Rosa. Talvez seja um pouco cedo para tamanha deferência, mas recomendo que leiam e tirem suas próprias conclusões. Segue o primeiro capítulo de "o remorso de baltazar serapião", com minúsculas e tudo, como uma pequena amostra.

"a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.
mal tolerados por quantos disputavam habitação naqueles ermos, batíamos os cascos em grandes trabalhos e estávamos preparados, sem saber, para desgraças absolutas ao tamanho de bichos desumanos. tamanho de gado, aparentados de nossa vaca, reunidos em família como pecadores de uma mesma praga. maleita nossa, nós, reunidos em família, haveríamos de nos destituir lentamente de toda a pouca normalidade.
abríamos os olhos pirilampos à fraca luz da vela, porque a sarga mugia noite inteira quando havia tempestade. dava-lhe frio e aflição de barulhos. era pesado que nos preocupássemos com a sua tristeza, se havia algo na sua voz que nos referia, como se soubesse nosso nome, como se, por motivo perverso algum, nos fosse melódico o seu timbre e nos fizesse sentido a medida da sua dor. por isso, custava deixá-la sem retorno, sem aviso de que a má disposição das nuvens era fúria de passagem.
com vento a bater nos tapumes da janela mal coberta, água a inundar esterco no chão, velha, ela ficava à espera de que algo repusesse o dia e a libertasse para o campo, a fazer nada senão comer erva, vendo-nos labor ininterrupto. nós não dormíamos, ficávamos a fustigar o sono com dores de cabeça, martírios horas e horas. o aldegundes, que se levantava para a tentar acalmar, falava-lhe e prometia-lhe tudo. o meu pai dizia que, a ele, a sarga o confundia mais na ideia de família, se nascera com ela ali e, já eu um irmão muito mais velho, haveria de ser em perigo que o aldegundes se deixaria com ela em brincadeiras. que tempo de crescer o de uma criança, exclamávamos, com uma vaca pela mão em companhia, conversas a sério como se fosse entre gente, e a gostar dela como se gosta das pessoas, ou mais do que das pessoas todas, dizia ele, só algumas é que não, como a mãe, o pai, o irmão e a irmã. assim ela acalmava um pouco à voz infantil dele e nós adormecíamos instantes, mas voltávamos a acordar com a trovoada, embatendo nítida sobre a nossa casa tão pequena, e com o gemido abafado da bicha que recomeçava.
nós éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam. ele é sarga, é dos sargas cara chapada. nada éramos os serapião, nome da família, e já nos desimportávamos com isso. dizia o meu pai, o povo simplifica tudo e a nós veem-nos com a vaca e lembram-se dela, que é mais fácil para se lembrarem de nós e nos identificarem. a vaca era a nossa grande história, pensava eu, como haveria de nos apelidar a todos e servir de tema de conversa quando perguntavam pela mãe, pelo pai, perguntavam pela vaca, magra, feia, tonta da cabeça, sempre pronta a morrer sem morrer. e riam-se assim com o nosso disparate de ter um animal tão tratado como família, e não entendiam muito bem. não fazia mal, achávamos que éramos muito lúcidos, e adorávamos a sarga, mesmo nas noites de tempestade quando se amedrontava e nos obrigava a acordar. o aldegundes vinha dizer-nos que ela tinha água nas patas e que em pressas se devia varrer dali inundação que lhe dava medo, e ele não reparava que também se sujara nos pés e fedia, enquanto cheirávamos e agoniávamos de tormento sem mais sono.
o meu pai pagava ainda a ousadia de se chamar afonso. afonso segundo um rei, mas sobretudo em semelhança ao senhor da casa a que servíamos. uma ousadia disparatada, um sarga chamado afonso, um verdadeiro familiar da vaca como se viesse de rei. quem não tinha do que se honrar, que diabo honraria aludindo a tal nome, perguntavam as pessoas ocupadas com nossa vida. dom afonso, o da casa, era-o por herança e vinha mesmo das famílias de sua majestade, com um sangue bom que alastrava por toda a sua linhagem. nobres senhores do país, terras a perder de vista, vassalos poderosos, gente esperta das coisas do nosso mundo e de todos os mundos vedados. por isso, esqueciam-se quase sempre de que ele, o meu pai, se chamava afonso, e só lhe chamavam sarga, o da sarga, como ele e ela, como um casal. à minha mãe chegavam a dizer que fora à vaca que ele fizera os filhos, e ela revoltava-se. era sempre ela quem barafustava furiosa até que o meu pai viesse e impusesse o juízo e a calma. o meu pai entrava em casa muito tarde, quando estávamos recolhidos à luz da fogueira, e era feito silêncio para que aliviasse o cansaço e pedisse o que lhe aprouvesse. normalmente, tínhamos refeição da noite, jantar quente com vantagens sobre o desamparo da nossa condição social, e escutávamos as impressões do dia, as instruções para o que viria, e os votos de boa noite. por vezes, eu podia perguntar coisas. em noites de maior paz, faria perguntas sobre as mulheres e as promessas do corpo delas feitas ao desalento do nosso corpo de homens. e deixaríamos coisas ditas no ar, para continuar interminavelmente. eram coisas que se suspendiam sobre nós, como roupa a secar, e com que nos deparávamos mais tarde, como se lhes batêssemos com a cabeça numa distração qualquer, quando o trabalho era satisfeito e o tempo se permitia preciosamente ao convívio. o meu pai, o sarga, dizia-me que, se pudera pacificamente chamar-se afonso, sentiria maior felicidade. recordava os meus avós e jurava que chegaram a ter uma pequena terra só deles, escondida num muro à inveja dos trepadores e cultivada de legumes para servir uma fome só da família. era uma terra bonita de vistas, abençoada de fertilidade, calma de vento e cheia de furos de água. bebíamos e comíamos da nossa terra, lembro-me, contava o meu pai, era muito pequeno, como o aldegundes, e tudo ali nos bastava, como tínhamos galinhas e coelhos e o casal de porcos a fazer uma ninhada de leitões para cada ano, e era verdade que ninguém nos incomodava ou se acercava da nossa discrição. estávamos ali esquecidos para bem do nosso sossego. o meu pai sossegava e recolhia-se à cama, onde a minha mãe já se recolhera, a pedido de autorização, aliviada do peso do corpo em cima do pé torto, coçando longamente as pernas da comichão que lhe dava, atenta para acordar bem cedo na manhã seguinte.
quando chovia noite inteira era o pior. o aldegundes, fraco, um repolho de gente quase a querer ser homem, era descarnado e enfezado de altura e largura. que haveria de poder ele quando a sarga estava mais assustada e escutava menos as suas palavras. imaginava eu que ela assustada quisesse fugir para onde conhecesse mais seguro, soubéramos nós o que ela soubesse e talvez se acalmasse em algum lugar. mas, sem diálogo, ela ali ficava a debater-se com o coração aos saltos e o aldegundes choramingando súplicas, o meu pai infinitamente paciente, abdicado de descanso pela vaca, e eu sempre fazendo conta à atenção que lhe era dada, uma permissão desmedida no prejuízo das nossas noites. o aldegundes apossava-se do corpo da sarga pela cabeça, mas era verdade que ela era tonta, como fosse destituída da pouca inteligência que as vacas podiam ter. não tinha nem uma, o mais que fazia era reconhecer-nos e gostar de nós, isso sentíamos, e mais do que isso, nada. entornava os recipientes, perdia os caminhos, batia com o focinho nas paredes, enganada das portas. mas o aldegundes lá lhe esfregava a cabeça, olhos nos olhos, na escuridão. punha vela a arder protegida e queria muito não demorar. mas água que entrava era desordenada e cruel. e era certo que seria o que mais assustava a sarga, por isso ele se dava ao trabalho de varrer cuidadosamente tudo, porta aberta ao campo a enxotar esterco lá para fora, a vaca detida pela corda ao pescoço.
o meu pai levantou-se sem que a irritação lhe turvasse os sentidos. levou vela a juntar à do aldegundes e não se ouviu mais nada. a sarga calou-se de sossego e sono, especada na noite como uma coisa que só parecesse ser ela sem o ser. era como um objeto, sem voz nem movimento, disposto para o tempo da noite sem serventia nem mais nada. e nós adormecemos também, espantados com a obediência ao meu pai, discernido superiormente sobre todas as coisas da nossa vida."
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