Higor 30/06/2018
Sobre uma história que, mesmo com furos, brilha
Poucos autores conseguem arrancar de seus leitores as sensações mais sublimes durante a leitura, indo além dos convencionais sentimentos que toda e qualquer leitura, por mais rasa que seja, consegue arrancar. De maneira impressionante, J. M. G. Le Clézio, Nobel de Literatura de 2008, entra para tal seleto grupo.
‘Peixe dourado’ aborda um tema aparentemente batido, usado a exaustão tanto em livros clássicos, eruditos, como os de entretenimento: o tráfico humano. A vítima, dessa vez, é Laila, menina raptada no Saara ocidental e vendida no Marrocos, espancada a ponto de perder parcialmente a audição. Amando Lalla Asma, que a comprou, e sendo reciprocamente sendo amada, Laila passa dias felizes com a ‘avó’, como chama carinhosamente. Como é de se esperar, reviravoltas intensas acontecem na vida já nada fácil da garota, que se vê obrigada a se lançar a própria sorte no mundo e buscar sua própria liberdade.
É no meio de um plot nada original que o autor se destaca, fazendo com que o leitor contemple sua obra, primeiro com curiosidade duvidosa, depois com fascinação. O ditado, conhecido de leitores, que ‘o autor faz com que bebamos de sua fonte, que alimentemos a alma’ se faz presente neste livro, pois eu virava cada página extasiado, apaixonado pelo jeito com que tudo era narrado. Um sofrimento assolador e constante, diário, era desferido contra a jovem Laila, mas a delicadeza de Le Clézio se sobressaia, fazia-nos esperar por um final reconfortante, nem que, para isso, nós, meros leitores, entrássemos nas páginas e carregássemos o papel de anjo da guarda da jovem sofredora.
Procurando na mente por outros leitores que despertaram em mim tanto fascínio e incômodo durante a leitura, consigo realmente destacar poucos autores: Svetlana Aleksievitch, com sua realidade bruta; William Faulkner, com sua ambientação sem rodeios; apenas alguns exemplos, para não criar polêmicas maiores... E entre eles, Le Clézio, um autor franco-mauriciano, publicado e lido de maneira contida aqui no Brasil, mas laureado com o prêmio máximo da literatura.
No entanto, apesar de tamanho êxtase com a escrita do autor, é importante citar os pontos negativos do livro, que fizeram com que o mesmo recebesse apenas três estrelas, quando tinha tudo para receber bem mais. O livro tem muitos furos, alguns inverossímeis, que chegam a incomodar, mesmo em um texto tão belamente escrito. Em determinado momento, por exemplo, a jovem Laila perde totalmente a audição, de maneira dramática e até então irreversível, compondo uma das cenas mais lindas do livro, para, páginas depois, voltar a escutar perfeitamente, como se nada tivesse acontecido; fora as idas e vindas da mesma, por vários países, fácil demais para uma ex-escrava negra procurada pela policia e sem documentação alguma.
São fatores que não douram a pílula, mas questionam a capacidade de um autor extremamente talentoso em escrever coisas tão lindas, de fazer enredos mais redondos, ou com furos menos perceptíveis. Erro bobo para alguém tão grandioso.
Apesar de tudo, o que se tem é um autor excelente com uma história rica e sensível, e ao mesmo tempo dura e pesada, de personagens fortes, que querem viver, que gritam para nos contar suas histórias, sejam eles protagonistas ou personagens secundários. Uma bela história para ser a porta de entrada para conhecer o autor.
Este livro faz parte do 'Projeto Lendo Nobel'. Mais em:
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