spoiler visualizar_laramb 09/01/2024
Entre os dias 13 e 15 de fevereiro de 1945, as forças aliadas realizaram um ataque surpresa em Dresden, chamada de capital barroca da Alemanha. 1.300 bombardeiros despejaram 3.900 toneladas de dispositivos incendiários e bombas destruindo 39 quilômetros quadrados do centro da cidade. Embora aja discordância para se chegar a um número preciso, estima-se que tenham morrido mais de 130 mil pessoas. Entre os sobreviventes estava um jovem norte-americano, prisioneiro de guerra dos nazistas, chamado Kurt Vonnegut Jr.
A experiência de Vonnegut o perseguiu pela vida e resultou em Matadouro-Cinco, uma verdadeira obra-prima contra as guerras, os armamentos e a indústria bélica. Contudo, este não é um livro normal. Deixando de lado a ladainha de relatos cronológicos recheados de detalhes e diálogos e sofrimentos, Kurt Vonnegut vestiu sua narrativa com tons de ficção científica e trouxe viagens no tempo e contatos com uma curiosa e evoluída raça de extraterrestres. O horror da Segunda Guerra Mundial é psicodélico, confuso, cheio de lacunas e com um humor negro que corrói. Matadouro-Cinco é um livro ácido e genial.
Com pouco mais de duzentas e cinquenta páginas, Matadouro-Cinco é resumido pelo próprio autor como um livro curto, confuso e desarmônico. Tudo isso ?porque nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre?. Partindo dessa ideia, viajamos no tempo e espaço com Billy Pilgrim, um alter-ego do autor, que é jogado no palco de horrores da guerra ainda jovem, uma criança em meio a muitas outras. Ali, ele acaba preso e como prisioneiro dos nazistas testemunha horrores e sobrevive ao ataque a Dresden. De volta para casa, surta, retorna ao normal, mas vive sempre atormentado por tudo o que viu. A jornada do protagonista de Vonnegut ganha ares de loucura porque ele é capaz de viajar no tempo. Ele conhece passado e futuro. Ah, e ainda tem uma experiência de abdução pelos habitantes do longínquo planeta Tralfamadore.
Uma leitura rápida estraga a experiência de Matadouro-Cinco. Porque a princípio nada ali faz sentido. Mas o livro é de uma genialidade absurda. O caos da guerra não faz sentido. A luta que se travava na Europa, por mais necessária que fosse ante a loucura de Hitler, tinha seus lados surreais. Tudo naquele cenário era brutal e quem estava no campo, à frente, jovens e inexperientes soldados ou velhos caquéticos e desdentados, não sabiam exatamente pelo que lutavam. Qual a justificativa para tanto horror?
Na época em que Matadouro-Cinco foi escrito e publicado os EUA viviam o pesadelo da Guerra do Vietnã, outro conflito absurdo. É possível que Vonnegut tenha bebido na revolta pessoal contra essa guerra para compor muito do discurso anti-armamentista de Matadouro-Cinco.
?E todos os dias meu governo me fornece uma contagem dos cadáveres criados pela ciência militar no Vietnã?.
Algumas das cenas mais curiosas de Matadouro-Cinco estão nos diálogos entre Billy e os tralfamadorianos. A visão de mundo e de vida dos extraterrestres é peculiar e traz reflexões bem interessantes. Ao mesmo tempo, a forma crua como tudo se desenrola na narrativa pode chocar. Geralmente estamos acostumados com visões atenuantes da guerra na literatura. Há sempre um herói a realizar atos de bravura. Tendência nossa querer romantizar até mesmo os massacres. Kurt Vonnegut fugiu de tudo isso e escancarou a realidade de uma rotina em que nada é bonito e que, em muitas vezes, o bizarro e o humor ganham espaço porque só assim é possível continuar.
Matadouro-Cinco é um livro para ser lido várias vezes. As experiências com ele são infindáveis e acredito que nossa percepção só tende a se ampliar quanto mais vezes mergulharmos nessa história. Se buscamos explicação para justificar qualquer ato de violência nos dias de hoje, aqui temos uma história que deixa claro que não há a menor chance de conseguirmos uma explicação lógica.
?E então, certa manhã, acordaram e descobriram que a porta estava destrancada. A Segunda Guerra Mundial tinha chegado ao fim na Europa