Thales.Santos 11/01/2024
Letalidade policial e corrupção:os dois lados da mesma moeda
No capítulo “Tarja preta, Fitinha Azul” o narrador fala da política do BOPE em não aceitar rendição do “opositor”, em que a única opção viável é a morte. Logo em seguida ele diz como, supostamente, as resistências contra os policiais aumentaram drasticamente, afinal, os opositores sabendo que não vão sobreviver de qualquer jeito, é mais fácil cair atirando. Já na segunda parte, Alice e Renata conversam sobre o papel da polícia na manutenção da violência e do crime. Alice se mostra indignada com sua amiga por essa só pensar no lado dos criminosos, afinal, ninguém na sociedade pensa no lado dos policiais... Colocam suas vidas em risco todo dia que saem de casa, vivendo quase um estado de guerra hobbeseano, todos contra todos. Vigilância máxima, olhos sempre aberto: é matar ou morrer. Numa dinâmica dessas, o treinamento com requinte de crueldade e desumano do BOPE parecem ser um bom caminho. Afinal, quem irá nos salvar, não é mesmo?
Para quem não está familiarizado com os debates da segurança pública, de fato parece que há uma correlação de forças entre a polícia e o tráfico. Mas, quando a gente pesquisa algumas coisas básicas, percebemos que morte em confronto não é a principal causa de morte entre os policiais. Na verdade, não é nem mesmo a segunda causa… O suicídio é o principal fator que leva os policiais a morte fazendo com que, com um toque perverso de ironia, nossa força policial seja conhecida no mundo como a que mais mata e a que mais se mata… Em segundo lugar, estariam as mortes em “bicos” feitos pelos PM’s para completar renda ou mesmo estando em folga. Por exemplo, o primeiro capítulo da primeira parte do livro, o “Tiro Amigo”, temos a história de Amâncio, que toma um tiro nas costas voltando para casa.
Vamos a alguns dados? Enfatizando que aqui, estamos falando particularmente da realidade fluminense, que além de ser o estado em que a história se passa, é também a minha área de pesquisa. Em primeiro lugar, se a gente pegar os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), em 2006, o ano em que o livro foi lançado, morreram 26 PM e 2 PC. Em contraposição, morreram 1.063 civis em decorrência da intervenção de agentes do Estado. Se pegarmos de 2003 a 2023, o ano em que mais morreram PM e PC em serviço temos, respectivamente, 2004 (50 PM mortos) e 2005/2007 (dois anos em que morreram 9 PC). Em contraste, se pegarmos o ano em que mais morreram civis em decorrência da intervenção policial temos 2019 com 1.814 mortos.
Mas você pode questionar dizendo “mas de repente esse ano foi um ponto fora da curva”. Acontece que não. Se pegarmos de 2003 a 2008, temos em média, aproximadamente 1100 civis mortos por ano. De 2016 a 2022, são 1300 mortes. Ou seja: não é novidade os números de civis mortos pela polícia no estado do RJ ultrapassarem a faixa de mil por ano.
Caso você não esteja suficientemente convencido, temos um outro aspecto a se considerar: as chacinas. Tradicionalmente, as chacinas são consideradas a partir da morte de 3 pessoas ou mais e pode ser perpetuado por diversos atores sociais diferentes: desde facções criminosas à própria polícia. Se pegarmos as 16 maiores chacinas perpetradas pela PC e PM no RJ (sendo a maior delas a do Jacarezinha) temos um total de 253 civis mortos em oposição à morte de 4 policiais (3 PM + 1 PC). Em qualquer ângulo que se analise, é impossível encontrar qualquer correlação de forças.
Não, não estou negando a força do crime organizado e nem que essas operações são perigosas. Mas há fatores a serem considerados. Em primeiro lugar, grande parte das ações policiais, sejam elas da PM ou PC, são realizadas em territórios controladas pelo tráfico. E seja o Comando Vermelho, ou seja o ADA, TCP etc, é fato que a maior parte dos “soldados” dessas facções só são soldados num plano simbólico, porque treinamento militar de fato quase nenhum deles têm. Grande parte são jovens, que trocam tiros com a polícia usando camisetas e chinelos de dedo e sem saber manejar uma arma direito.
Se essa visão de que o tráfico é muito bem organizado e possui um arsenal de guerra, temos três opções: ou os criminosos possuem deficiência visual e, portanto, não acertam seus alvos; ou a polícia tem muita sorte em não ser atingida; ou, como dito anteriormente, são pessoas que claramente não possuem a menor instrução de como manejar um material bélico.
Reafirmo: por mais que o livro tente passar essa ideia, não existe qualquer equilíbrio nessa "guerra". Na verdade, vender a imagem que existe uma "guerra urbana" só resulta em dois cenários. O primeiro deles é a impossibilidade de separar a letalidade policial da corrupção. Quanto mais letal for a polícia, mais corrupta ela é. Tem uma passagem do livro, na parte do "diário de guerra", que um major chega no batalhão em que o Santiago já estava atuando um tempo. E ele já chega ali querendo saber como ele vai conseguir receber propina e como funcionava os esquemas e o Santiago diz que se ele quer de fato ganhar uma grana, ele precisa causar medo. Ser truculento aumenta e valoriza o passe daquele policial. Basta se perguntar: você sendo traficante. pq pagaria propina a um policial molenga, que não mete bala em ninguém? Tradicionalmente, os policiais (sejam PC ou PM) mais "linha dura" e matadores que são famosos na história do RJ, principalmente aqueles ligados a Scuderie Le Cocq e outros grupos de extermínio (como o Mariscot, Sivuca, Ronnie Lessa etc) eram também policiais extremamente corruptos. Não é coincidência a milícia ser formada principalmente por esses tipos de policiais matadores.
Por fim, esse cenário também favorece políticos que se elegem alimentando o sentimento de insegurança da população, prometendo respostas rápidas e fáceis. Os últimos governadores do RJ, pelo menos todo de 2000 pra cá, se elegeram usando a segurança pública como principal base de suas campanhas. Mas a segurança pública que eles vendem é essa que, como diz uma famosa pesquisadora, deixa a polícia nessa eterna sina de "síndrome do cabrito", pois sobe e desce morro toda semana e no final do dia a famosa "crise" vivida na segurança pública permanece do jeito que está. Mas essa crise, alimenta na sociedade um desejo de resolução rápida do problema, daí em diante pode tudo, contanto que eu possa andar com meu celular na rua ou mesmo estacionar meu carro em qualquer lugar. Mas acontece que qualquer um que se eleja prometendo uma polícia com ainda mais poderes e liberdade para agir, a insegurança só permanece. Para esses tipo de político, essas operações policiais ou diversos confrontos armados são mais importante, porque sai no jornal e demais mídias passando uma falsa sensação de que a polícia está fazendo algo, do que de fato organizar um policiamento conforme as necessidades da população. Um policiamento bem organizado não rende capa de jornal, portanto não vale a pena...
E se você que está lendo acha a solução é matar mais, você na verdade não está pensando em nada na segurança do policial. Dos três batalhões que mais mataram no ano de 2023 (respectivamente, o 15 BPM, o 18 BPM e o 33 BPM), dois deles foram os que mais tiveram policiais mortos em serviço, o 15 BPM com 4 mortes e o 33 BPM com 2 mortes.
Em matéria de segurança pública, um dos poucos acertos do livro é demonstrar com precisão a rivalidade entre a polícia civil e a polícia militar. Dei boas gargalhadas na segunda parte com alguns comentários feitos de um debochando do outro. Para quem trabalha ou convive no meio de policiais sabe que é exatamente da forma como foi descrito.