Brunífero 18/03/2022
A luta contra a vida tornada maldição
No estudo da História, cresceu nas últimas décadas o papel da memória. Não é fácil distinguir a diferença entre as duas coisas e há até quem diga que não há separação alguma, mas simplificando, memória seria uma lente pela qual você vê a história, no qual se faz um recorte do que deve ser lembrado e do que deve ser esquecido. É como um método pelo qual se escolhe o que as pessoas irão lembrar. O passado sempre estará lá, mas como é impossível acessá-lo em sua essência, a memória seria uma maneira de fazê-lo, ainda que com distorções e esquecimentos. Mas nada impede que esse esquecimento seja acessado, e foi com essa pretensão que Fernando Morais decidiu investigar a vida de Olga Benário Prestes, no começo dos anos 80.
Depois do sucesso de A Ilha (já resenhado por mim), houve um intervalo de 9 anos entre a publicação de Ilha (1976) e Olga (1985), ambos pela Alfa-Ômega. Nesse período, Fernando foi parlamentar pelo MDB e estava ocupado com questões burocráticas, mas também se ocupava de pesquisar a respeito de uma distante lembrança infantil, a respeito de uma tal Olga que o pai mencionava. Na época uma figura quase lendária, Olga era conhecida apenas como a esposa do líder revolucionário Luís Carlos Prestes nos distantes anos 30 e que teve um trágico destino, com quase nenhuma informação a seu respeito. O momento em que pesquisava a vida de Olga provou ser uma verdadeira corrida contra o tempo, infinitamente mais desafiador que a pesquisa anterior. Como narra na apresentação original do livro, Morais teria que lidar com contemporâneos quase octogenários e de memória falha, e estes morreriam pouco tempo depois - o próprio Prestes, um dos primeiros entrevistados pelo autor, faleceu em 1990. Também se mostrou necessário viagens ao exterior, em especial à Berlim Oriental (socialista), onde residia um enorme acervo sobre a sua figura e militantes sobreviventes da República de Weimar, que a conheceram pessoalmente. É quase inacreditável pensar que 3 anos de pesquisa, dezenas de entrevistados e com amparo de acervos do mundo todo (no caminho, se descobriu traços seus até mesmo em Roma e Washington) tenham resultado num livro de pouco menos de 300 páginas. Isso se deve não só à notável escrita de Morais, solta, extremamente dinâmica e de rigor incontestável, mas também pelo espanto que tive entendendo melhor a figura de Olga. É quase um clichê elogiar uma reportagem ou biografia dizendo que se assemelha a um thriller, mas aqui é difícil evitar esse elogio até pela natureza inacreditável da vida de Olga.
Seria difícil resumir a figura de Olga nesse texto. Mesmo que você já a conheça, é capaz que você ainda tenha surpresas ao ler o livro. Natural da Alemanha, Olga militou por lá pelo Partido Comunista, o que lhe garantiu uma chance de ir à União Soviética para agir como espiã internacional, chegando a receber até treinamento de paraquedismo (!!).e se tornando poliglota no processo. Então, no começo dos anos 30, ela recebeu a missão de acompanhar um militar brasileiro tornado revolucionário, e que pretendia lançar a revolução no país. No caso, Luís Carlos Prestes, e assim começava a ligação de Olga com o país. E por mais que tudo que seja narrado no livro tenha acontecido de verdade, isso é tudo que eu ousarei dizer. O resto da história de Olga é simplesmente inacreditável - ou não?
Enquanto fui lendo, fica claro que, além da complexidade factual dos acontecimentos que se sucedem, há a complexidade humana da história, não só pelas tragédias que vão se sucedendo, mas também pelo olhar aguçado do autor. Por exemplo: na época em que saiu, Fernando Morais sofreu muitas críticas por ter dito que, quando Prestes se encontrara com Olga, este ainda era virgem. Isso foi tema de questionamento em uma edição de 1986 do Roda Viva, no qual Prestes diz que não teve problemas com essa revelação, e que, longe de ter sido uma invasão de privacidade, ele próprio contara isso espontaneamente ao Fernando Morais. Mesmo considerando a boa vontade de Luís Carlos, ainda seria válido questionar se valeria a pena expor uma intimidade x ou y em um livro histórico, afinal, será que o(a) biografado(a) gostaria de vê-las ali? É uma questão bem complexa, mas que enfraqueceria o livro. Para um recorte histórico que, normalmente, se distancia das pessoas comuns (se acostumem a ver muitos nomes famosos ou relevantes do Brasil da época), essa aproximação humana acaba sendo uma grande força, e que não só fortalece a memória de Olga, como também o que eu acredito que se tornou a grande força de Fernando Morais como escritor: a vida desconhecida, e ainda assim cativante..
Hoje, quase 40 anos após a publicação de Olga, é fácil chegar à conclusão que Fernando Morais fora bem-sucedido em sua missão. Não só apenas porque o livro foi um sucesso ainda maior que A Ilha, o que ninguém esperava; hoje, Olga é referenciada na história política do país, pelas esquerdas, nas salas de aula e na cultura (especialmente na adaptação de 2004, ainda que essa não faça jus ao inesperado intimismo da obra original). De forma aprofundada, porém, a nova mistificação da mulher, tornada personagem de novo, acaba por apagar não só um envolvimento mais profundo com sua existência como também a necessidade de se questionar a memória dominante. Com exceção de Chatô - O Rei do Brasil, O Mago e a recente biografia de Lula (que sairá em múltiplas partes), o trabalho de Fernando como jornalista se aproxima, embora não iguale, a tendência da microhistória, isso é, os pequenos acontecimentos que, em si, carregam um enorme significado - se me permitem ser poético quanto a isso. Talvez por isso, Olga seja o livro mais importante que Morais já escreveu, ainda que, talvez, não seja o melhor. Além da objetiva qualidade da narrativa, me peguei em um assombro por imaginar que algo tão interessante tenha passado despercebido durante tempo. Mas acima de tudo, há uma grande tristeza nisso tudo. Ler a vida de Olga é entender um pouco mais dessa crueldade inenarrável chamada Brasil, que transforma a morte em um alívio frente a tanta injustiça. E também uma certa alegria, por saber que pessoas como Olga existiram, mesmo que tudo conspirasse contra essa existência. Não no sentido material, isso só se concretizaria na militância comunista na Alemanha e no Brasil. Digo em matéria de personalidade mesmo. É uma dessas figuras inclassificáveis, raras, que a gente tem a chance de conhecer, e que nos ajudam a seguir em frente. Mesmo quando tudo parece perdido.
*Lido na edição de bolso da Companhia das Letras. Além de preservar a apresentação original da Alfa-Ômega, o livro ainda tem um índice remissivo e a indicação das fontes, orais e bibliográficas.