Ricardo Rocha 25/02/2014
Vida vida
Assim como passamos a noite viajando e mais tarde confundimos viagens, assim como falamos sobre Deus e cinema; assim como introduzimos o clima do primeiro beijo; assim com passamos a madrugada sem comer e comemos sanduíches no almoço e bife com batatas à noite; assim como preparamos o amor e fizemos amor; e dormimos; e tornamos a fazer em outras posições a satisfação precede sempre, no amor, um novo desejo e não o tédio. Amar uma mulher, descobri, será continuar amando, e renovando as mesmas coisas que fizeram nascer esse amor. Amar um livro é semelhante. Na verdade, e a própria Helena sabia, sua importância estava ligada à importância do irmão, Lúcio. A vantagem sobre outra obra qualquer sobre ele, e a beleza maior, está também no fato da proximidade deles. E tanto aqui quanto em Vida Vida, há muito Lúcio sob o prisma do amor de alguém próximo, e pouca quase nenhuma crítica literária. E assim como penso que li algo sobre ele nesse ou naquele, importa é que a memória vívida ficou, como se fosse minha, tenha sido em qual seja. Lúcio Cardoso é pra lá de subestimado na nossa literatura. Não duvido que alguém que ama Machado e José Saramago o desconheça. Que desconheça a casa Assassinada. Lúcio Cardoso não era dado a rodinhas literárias. Não era escritor de escrever notinhas pra passar a limpo. Era vivo. A casa assassinada é viva. Sua rodinha literária chamava-se Clarice Lispector, aquela que teria casado com ele "não fosse a impossibilidade". Clarice, segundo ela mesma, caiu nos braços dele quando ambos faziam ABBR. Que lugar adequado para os dois. Joyce não era leitura de Clarice mas aceitou a sugestão do título Perto do Coração Selvagem, fragmento de Joyce. Muito adequado. Se amaram, do jeito deles, que aliás não eram santos. Nem a doença conseguiu fazer isso com ele. marginal, rebelde, impulsivo, com quês de grosseiro e um coração de manteiga. Helena via tudo, de perto (quando ele, desempregado, morou de favor num apartamento que mal tinha espaço para seus habitantes originais) e de longe, quando ele sumia no mundo. A verdade é que o mais perto que chegou, já não era ele, mas o que tinha sofrido o derrame, o que em nada o mudou. Não escreveu mais. E continuou alterando seus humores até a morte. Para amar Lúcio Cardoso, Helena e Clarice o conheceram. Eu precisei ler Dias perdidos e, sobretudo, A crônica da casa assassinada. Como disse na eloquencia dessa adolescencia única uma sobrinha, quando perguntei por que ela tinha gostado tanto da Crônica a ponto de fazer um post de blog em que os elogios eram abundandes embora nem sempre inteligíveis: - Ora, o que dizer se ele era foda?