Gustavo.Borba 05/02/2019
Infelizmente atual
#LivrosQueLi
Tratado sobre a tolerância, de Voltaire. Ed. L&PM. Este livro, escrito em 1763, é tão atual quanto no momento em que foi escrito. E o motivo é que ele trata da intolerância religiosa, atuante hoje como naquele tempo, apenas as consequências sendo diversas. O que motivou a obra foi o caso Calas. Em 1762, Marc-Antoine Calas é encontrado morto por enforcamento dentro da mercearia do pai. O irmão e um amigo presentes na casa saem pelas ruas à procura de socorro, enquanto a multidão se aglomera na porta da casa devido ao alarido de dor que os pais do morto ressoam. Logo, uma certeza toma a multidão: o pai do rapaz é o assassino! Tais fatos acontecem na cidade de Toulouse, longe da cosmopolita Paris. O sistema de justiça da cidade se deixa impressionar pela pressão popular e conclui pela culpa do pai, Jean Calas, e o condenam à morte, após quase também condenar a mãe, o irmão e o amigo como cúmplices. E onde está a questão religiosa neste caso? É que a família Calas é protestante numa França majoritariamente católica, e Marc-Antoine Calas pretendia renegar o protestantismo e converter-se ao catolicismo. O que o clamor popular viu como culpa nada mais foi que um ato de intolerância religiosa, em que se fazia presente um forte sentimento anti-protestante, que era levado aos extremos. Voltaire escreve seu livro como forma de argumentar pela defesa da família, certo de sua inocência, e ele demonstra com argumentação lógica a impossibilidade da culpa da família. De fato, fica flagrante que o que moveu a condenação foi o sentimento de intolerância religiosa. Voltaire vai rebater de várias formas a continuidade desse sentimento, inclusive com a prescrição de seu ápice: que se matem todos os protestantes da França, ao invés de caçar apenas alguns poucos por vez. Quem deixa de negociar com um protestante? Porventura o próprio rei da França deixa de manter relações com líderes de outras religiões? Ademais, não foi o próprio Jesus Cristo que nos prescreveu as diretrizes do acolhimento e da tolerância? Por fim, o processo da morte de Jean Calas foi enviado a Paris pela sua esposa e acolhido pelo monarca e sua equipe, que revisaram a decisão e, mesmo após a pena já ter sido executada, concluíram pela sua inocência e pelo pagamento de uma indenização à família, restabelecendo seu nome. Voltaire deixa claro que os valores cosmopolitas e o que ele chama de religião natural prevaleceram diante de visões preconceituosas que causam mortes por conta de parágrafos de doutrina. Por inúmeros exemplos, ele demonstra como a crença monoteísta do cristianismo causou mais sofrimentos e mortes do que tudo o que os Evangelhos pudessem dizer ao contrário, diferente de outras crenças politeístas, que conviviam mais harmonicamente com crenças diferentes. Ele inclusive contesta os períodos de alegadas perseguições ao nascente cristianismo nos primeiros séculos da era cristã, afirmando que o que ocorreu não foi perseguição por motivos religiosos, haja vista que muitos dos martirizados ainda recebiam visitas e consolos de seus partidários cristãos, mas que os motivos de execução foram justamente suas ações em provocar convulsões sociais por desrespeito ao espírito cosmopolita das cidades do império romano, ou em perseguir outras crenças toleradas, ou por propor o não pagamento de algum tributo devido ou participação em evento cívico do império. Assim, vemos que a tese já defendida alhures (não me recordo por quem) de que o monoteísmo gera a intolerância, enquanto o politeísmo convive bem com as diferentes religiões, retorna em Voltaire ao relatar esse triste acontecimento a vitimar os Calas. Um importante, mesmo que curto, texto para a reflexão atual, quando centros de candomblé e umbanda têm sido demonizados e até mesmo atacados pelas seitas neopentecostais, numa luta injusta e anticristã por prestígio e audiência, que rendem milhões a essas denominações ditas cristãs. Recomendo.