Marcorigobelli 22/05/2011
Ordinário
A atual safra de autores dos quadrinhos nacionais conta com uma característica que não se via há gerações: o aparente desinteresse por trabalhar com os super-heróis que fizeram parte da vida de todos nós — as deles inclusos. Entre os nomes que despontam temos Rafa Coutinho, os gêmeos Bá e Moon, Rafael Grampá, Rafael Albuquerque, André Dahmer, Arnaldo Branco, André Kitagawa e Rafael Sica.
Durante a década de 1990 e a primeira metade dos anos 2000 houve um êxodo de artistas nacionais prestando serviço às gigantes dos quadrinhos ocidentais (DC, Marvel, Image, Top Cow) e outros em menor número embarcavam no exigente mercado europeu. Porém, de 2006 para cá, o foco dos novos autores brasileiros é produzir suas próprias obras, seus próprios personagens e fugir do estereótipo de super-heróis.
A influência dos grandes cartunistas nacionais como Laerte, Glauco, Iturrusgarai, Angeli e Fernando Gonsales é provavelmente a grande responsável pelo caminho que Sica e seus contemporâneos decidiram trilhar. E trilham muito bem.
Sica começou a publicar tiras em seu blog nos idos de 2009, ali ele apresentou um estilo peculiar com histórias completamente sem falas, em preto e branco e vivendo em uma paródia sádica do dia a dia nas metrópoles. A arte vai do simples e compreensível para a bizarrice orgânica que a mente demora para assimilar e mesmo assim o faz de sua própria forma. O humor ácido desse gaúcho de Pelotas com o tempo ganhou destaque e alcance, até que chegou aqui, na coletânea Ordinário publicada em fevereiro pelo selo Quadrinhos na Cia da Companhia das Letras.
De começo já aviso: Ordinário é uma obra para a compreensão de poucos e, mesmo aos capazes, duas ou três leituras seguidas serão necessárias. A coletânea depende muito da convivência do leitor com o dia a dia de uma grande cidade, seus lados positivos e negativos, seus temores, a solidão, o terror e por que não, sua mágica.
Passado esse obstáculo, o leitor precisa ter a mente aberta para as informações transmitidas e assim poder interpretá-las da melhor forma, porque não creio que Rafael teve a intenção de que houvesse uma só interpretação para cada tira sua, diferentes pessoas vão encará-las de diferentes formas. E cada micro-história contada transmite uma emoção diferente; tristeza, mágoa, lembranças, risadas, raiva, repulsa e indignação. Tudo isso sempre acompanhado de uma certa familiaridade que sentimos por aquela situação em específico.
A arte é peculiar e pode ser uma das principais responsáveis por agradar ou não o público, porque a retratação das pessoas e ambientes é tão caricata e ao mesmo tempo tão crua e sincera que alguns talvez cheguem a se ofender. Porém, o traço de Sica tem também ludismo e inocência que de sua própria forma misturam-se homogeneamente com a acidez, a agressividade e a sinceridade das histórias.
As tiras escolhidas para a coletânea não retratam um tema ou ambiente das metrópoles em específico, mas elas como um todo. E assim, mesmo com sua complexidade, é muito difícil que ao menos uma lhe diga algo ou te arranque uma risada sincera. Até porque, são 128 páginas delas.
Por incrível que pareça, as próprias tiras são o motivo de Ordinário perder um ponto e meio na nota. Independente do quão boas sejam, ainda assim não há nada de inédito na coletânea, são as mesmas histórias publicadas tempos atrás e que estão ao acesso de qualquer um pelo blog. Sei que esse tipo de publicação tornou-se tendência de mercado (André Dahmer que o diga), mas um volume editorial e graficamente tão bem cuidado merecia alguns trabalhos inéditos.
E, como tem virado rotina por parte da Quadrinhos na Cia., a produção do livro é muito acima da média. Não sei se foi proposital, mas ele lembra um Moleskine de capa mole não pautado onde cada página foi preenchida com uma tira. As bordas arredondadas e até o tipo de papel — o mesmo usado nas páginas do caderno, acid-free, mas em uma gramatura maior — remetem ao caderninho hipster que muitos amam e outros odeiam.
A arte da capa e da contra-capa são simples, mas já dão uma prévia do teor do livro. A capa vem com um easter-egg bacana: o título começa a ser lido com o volume em pé e te obriga a deitá-lo para terminar, o que nos prepara para o sentido de leitura, todo o miolo do livro é deitado para que o leitor não tenha que ficar girando o trambolho o tempo todo para ler o belo posfácio do ilustrador gaúcho Fabio Zimbres.
Todas as páginas onde não há tiras são pretas com letras brancas ou uma arte com pincéis em preto e cinza contrastando muito bem e dando um descanso pra mente durante a leitura da coletânea.
Destaque curioso para o logo da Quadrinhos na Cia. com uma cena icônica dos quadrinhos.
Como um todo, Ordinário é indispensável para os fãs do trabalho de Sica e qualquer leitor interessado em tiras que fogem do lugar-comum e nos apresentam o cotidiano de forma crua, sarcástica e inteligente. Porém, pode decepcionar aqueles que procuram por trabalhos novos além dos publicados no blog. Fora que fica uma beleza na estante. =]