Drakomanth 16/05/2021
INESQUECÍVEL
É difícil falar sobre essa incrível obra sem adentrar uma série de questões pessoais. Não sei se foi por fado ou sorte, mas a leitura desta obra se deu num período muito marcante da história de minha vida. Desta forma, cada passagem parecia incumbir um efeito transcendental tão forte que Musashi mais parecia um livro sagrado do quê um romance histórico fantástico. Chegou ao ponto de que, quando li pela primeira vez "O Sermão do Filho Ingrato" na madrugada do dia 04/08/2019 acabei postando a citação do mesmo (vide a seguir). No final da tarde do mesmo dia ? por uma ironia do destino ou vontade de Deus ? minha Mãe viria a falecer. Já se pasaram quase dois anos, ainda assim, a leitura da fatídica passagem foi capaz de verter uma cascata lacrimal descomunal. Por essas e outras razões para mim é extremamente difícil recomendar Musashi. Seria uma pretensão muito audaciosa querer que a obra despertasse em cada leitor o mesmo que despertou em mim, sendo que cada vivência é única. Porém, uma coisa eu garanto. Se o caro leitor entregar sua alma na leitura desta obra, duvido que continue sendo o mesmo após concluí-la.
"Buddha Prega Sobre o Quanto Devemos aos Pais.
Ouvi todos, pois em verdade assim acontece:
Estava Buddha certo dia na montanha Graghrakuta,
Próxima à cidade Rajagriha
Em companhia de seus santos eleitos e de discípulos iluminados
Quando uma multidão composta de monges e monjas,
Fiéis de ambos os sexos,
Seres celestiais, dragões e espíritos demoníacos,
Juntou-se querendo ouvir sua pregação.
E ao redor do trono de lótus em que Buddha se sentava,
Respeitosos reuniram-se todos, seu santo rosto contemplando
Sem ao menso piscar.
Foi então que Buddha
Pregando, disse:
'Devotos do mundo inteiro, ouvi-me:
Deveis muito à bondade do pai,
Deveis muito à compaixão da mãe.
Pois se o homem está neste mundo
Tem por causa o carma,
E por agentes do carma os pais
Não fosse pelo pai não nasceríeis,
Não fosse pela mãe não cresceríeis.
Eis porque:
Da semente paterna recebeis o espírito,
Ao ventre materno deveis a forma.
E por cauda dessas relações cármicas,
Nada neste mundo se compara
Ao misericordioso amor de uma mãe:
A ela deveis eterna gratidão.
Desde o momento em que a mãe
O filho recebe no ventre,
Dez meses ela passa sofrendo,
Em cada ato cotidiano ?
No andar, no parar, no sentar e no dormir.
E o sofrimento não lhe dando trégua,
Perde a mãe a vontade
De satisfazer a fome e a sede e também de ataviar-se,
Apenas pensando em dar à luz o filho com segurança.
Os meses se completam
O dia do nascimento chega,
E os ventos cármicos o acontecimento apressam.
Sente dores a mãe em cada osso e cada junta,
Treme o pai de ansiedade pela mãe e pelo filho,
Parentes e conhecidos com ele sofrem.
Nasce o filho sobre a relva,
Infinita é a alegria dos pais,
Semelhante à da mulher pobre que de súbito ganha,
Mágica pérola que todos os desejos realiza.
Ao ouvir o primeiro choro do filho
Sente a mãe também ela renascer.
A partir dese dia o filho
No colo da mãe dorme,
Em seus joelhos brinca,
Do seu leite se alimenta,
E em sua misericórdia vive.
Sem a mãe o filho não se veste nem se despe.
A mãe, mesmo faminta tira da própria boca
Para o filho alimentar.
Sem a mãe um filho não se cria
Considerai todos,
Quantos leite sorvestes ao seio materno:
? Oitenta medidas repletas por dia!
E o tamanho do débito para com vossos pais:
? Infinito como o céu!
A mãe sai a trabalhar na aldeia vizinha:
Tira a água, acende o fogo,
Mói o trigo e a farinha peneira.
A caminho de volta, finda o dia,
Antes ainda de chegar à casa,
Imagina o filho à sua espera,
A chorar e a gritar por ela ansiando.
Peito confrangido, coração disparado,
Leite vertendo e incapaz de mais suportar,
Corre e da casa se aproxima.
De longe o filho vê a mãe chegando,
O cérebro usa, a cabeça agita,
E à mãe se dirige entre gritos e soluções.
Curvar-se a mãe, estende os braço,
os lábios aos do filho junta,
Duas emoções unificadas,
Nada no mundo supera este amor arrebatado.
Dois anos: o filho do colo se desprende,
E pela primeira vez sozinho anda.
E agora,
Sem o pai não saberia que o fogo queima,
Sem a mãe, que a lâmina corta o dedo.
Três anos: o filho recusa o leite materno,
E pela primeira vez de outras coisas se alimenta.
Sem o pai não saberia que o veneno mata,
Sem a mãe, que as ervas curam.
Se os pais a uma festa são convidados,
E guloseimas e delicadas iguarias lhes são oferecidas,
Nada comem mas tudo consigo guardam.
Ao retornar, o filho chamam e tudo lhe dão,
Felizes, apenas de ver o filho feliz.
O filho cresce,
E ao iniciar o convívio com amigos,
Roupas de seda o pai lhe compra,
Seus cabelos a mãe com capricho penteia.
Esquecidos de si mesmos ao filho tudo dedicam,
Eles próprios vestindo roupas velhas e rasgadas.
Passa o tempo e o filho se casa,
E uma estranha ao lar conduz,
Mais e mais os pais ele passa ignorar,
Mais e mais o novo casal íntimo se torna,
Trancado no quarto em animada conversa.
Envelhecem os pais:
Ânimo quebrantado, forças lhes faltando,
O filho apenas têm para recorrer,
E a nora para ajudá-los.
Mas a manhã se vai, a noite chega,
Sem que lhes vejam os rostos,
Cerrada está a porta na gélida madrugada,
Seu quarto é frio, semelhante ao da estalagem,
Que dá pouso por uma noite ao solitário viajante.
Não há mais repouso, nem risos.
E eis que num momento de crise,
O filho chamam para lhe pedir ajuda,
Mas nove em dez vezes ele não os atende.
E quando emfim chega, raivoso os ofende,
Aos gritos dizendo melhor lhes seria,
Morrer a continuar vivos, velhos e imprestáveis.
Peito repleto de mágoa, atordoados,
Os pais vertem lágrimas sentidas.
? Ah, guando eras pequeno,
Sem nossa ajuda não terias te alimentado,
Sem nossa ajuda não terias crescido.
Ah, nós a ti,,,'
?Eu... eu não aguento mais! Quem quiser que continue!..."
[YOSHIKAWA, Eiji. MUSASHI Vol.2 - O Céu (O SERMÃO DO FILHO INGRATO). Estação Liberdade. Trad: GOTODA, Leiko. 2017. p.651-656.]