Fabrício Franco 05/03/2024
Os sons líquidos de uma dupla jornada
Considerado o romance mais aclamado da literatura mexicana, é uma obra que exige a atenção do leitor. Com pouco mais de 100 páginas, a história começa com uma promessa: no leito de morte da mãe, Juan Preciado promete sair em busca do pai, Pedro Páramo. Ao chegar à pequena cidade de Comala, Juan descobre que Pedro já faleceu há muito e que, aparentemente, todos na cidade também se foram. Entretanto, um clima de assombro e incertezas toma conta do enredo, deixando claro que naquela cidade, repleta de ecos e vozes, nada é o que parece ser.
Na essência, esta é uma história de duas jornadas. A primeira é linear: um homem em busca de seu pai desaparecido. A segunda jornada é dantesca: uma descida espiralada ao submundo. Mas ao contrário do inferno matematicamente plotado por Dante, o de Rulfo é em grande parte sensorial, densamente povoado de sons e suas reverberações infinitas.
Fiquei deveras surpreso ao ver quanto do romance é composto por detalhes sonoros: o ar parado estilhaçado pelas asas batendo das pombas; beija-flores zunindo entre os arbustos de jasmim; risadas; um toque de dedos na janela do confessionário; o relógio da igreja soando as horas, "uma após outra, uma após outra, como se o tempo tivesse contraído." Também sons que não podemos ouvir, mas quase podemos imaginar: "a terra girando em dobradiças enferrujadas, o tremor de um mundo antigo derramando sua escuridão." E, é claro, os inúmeros sons da chuva. Chove muito em "Pedro Páramo". E é geralmente a água que marca as transições espaço-temporais do livro. Os mortos ficam inquietos quando chove. Como sementes, começam a se agitar em inquietação, até que irrompem em conversa: conforme a chuva amolece o solo, suas vozes conseguem se infiltrar e se tornar audíveis. Há uma inevitável fugacidade num romance com estrutura narrativa montada a partir de vozes abafadas em águas lamacentas, mas não é justamente o efêmero que nos faz inclinar a cabeça para ouvir melhor?
A escrita de Rulfo é econômica, com frases e palavras reduzidas ao essencial. Algumas passagens ficam em aberto, convidando o leitor a conectar os pontos com sua própria imaginação. O cenário rural, quente e árido em que se passa a obra serve como pano de fundo para reflexões sobre questões relevantes e delicadas, como o papel da igreja, o coronelismo, o incesto, a miséria e o amor não correspondido.