Otávio Augusto 30/01/2024Um quebra-cabeça mágico e polifônico Um quebra-cabeça mágico e polifônico
Todo clássico é um livro que cresce com a releitura. O caso de Pedro Páramo, contudo, é diferente. É o tipo de livro cuja releitura é imperativa. Não relê-lo é deixar para trás muitas camadas de significado e o prazer de se empenhar na compreensão da sua narrativa, que é polifônica, fragmentária e anacrônica. Por consequência, só consegui aproveitar essa pequena - em extensão - obra-prima agora, na segunda leitura, oportunidade em que avancei devagar, escrevendo comentários no corpo do texto e elaborando um guia de personagens, a fim de não me perder na narrativa; afirmo desde já que é um livro para ser lido com o lápis à mão. Dessa maneira tive uma experiência fantástica e impactante.
A história inicial é simples. Juan Preciado decide ir ao vilarejo de Comala em busca de seu pai, Pedro Páramo, a mando da mãe, Dolores, motivado por um suposto abandono familiar. Chegando ao vilarejo, Juan se depara com uma pequena cidade abandonada, muito quente e situada abaixo de uma ladeira íngreme. Abundio é o primeiro morador que encontra Juan e o guia até que a estalagem de Eduviges, uma mulher que fora amiga da mãe de Juan.
A partir dessa contextualização inicial o romance começa a se engrandecer. Passamos a ler capítulos que entrecortam o passado de Comala e seus habitantes com a narrativa de Juan no presente. Ambas linhas narrativas são desenvolvidas por meio de fragmentos exíguos, que dificilmente passam de duas ou três páginas. Não é à toa que Juan Rulfo disse que cortou o livro "até deixar apenas os ossos"; sua narrativa é concisa e desprovida de qualquer prolixidade. Além disso, os capítulos são narrados de maneira polifônica e não linear. Constantemente lemos um trecho cujo narrador desconhecemos e cujo acontecimento nos parece incompreensível até que, algumas páginas depois, leiamos outro fragmento que nos esclarecerá o ocorrido anteriormente e quem fora seu narrador. Sendo assim, temos contato com diferentes perspectivas sobre a história do vilarejo, sempre repassadas de maneira subjetiva – alguém que viveu em Comala –, sendo muitas delas até mesmo contraditórias entre si – peças defeituosas de um grande quebra-cabeça a ser montado pelo leitor.
Para além da densidade narrativa, há uma grande profundidade temática. Em minha interpretação, as personagens de Comala encontram-se em uma tênue linha que separa os vivos dos mortos e agem eivadas de pecado. Há incesto, estupro, assassinatos e outras malignidades que maculam o povoado. Até mesmo o padre Rentería, responsável pela absolvição das almas, é um sujeito venal. Por causa de sua corrupção, não houve absolvição dos habitantes de Comala. Logo, as almas de seus cadáveres caminham por Comala ignorantes da sua própria condição de mortalidade, mas reconhecem a morte de outras pessoas. Não seria exagero dizer que elas estão em uma espécie de limbo dantesco, pois o narrador já informou, na chegada de Juan, que o lugar é quente e situado abaixo de uma ladeira íngreme – é o inferno no qual as almas estão fadadas a repetirem, post mortem, os mesmos erros que cometeram em vida. Talvez o melhor a se considerar é que as almas habitam um cenário mágico de interseção entre a vida e a morte.
Ademais, é importante salientar o aspecto político da obra. Assim como Cem anos de solidão e A casa dos espíritos, Pedro Páramo nos convida a refletir sobre a condição da América latina, permeada por revoluções e ditaduras. O homem Pedro Páramo pode ser associado a figura de um coronel local, homem de grande influência do qual dependem todos os que estão a sua volta. A obra também intercepta a história do próprio México, ao fazer breves conexões com a revolução mexicana, cujo nome de um de seus líderes – Pancho Villa – chega a ser citado em dado momento do livro. Somos instigados a compreender mais sobre esse evento após a leitura.
Por fim, Pedro Páramo é uma leitura obrigatória para todo apaixonado pela literatura clássica. É o livro que influenciou todo o gênero realismo mágico, sendo elogiado por nomes como Gabriel García Marquez, Jorge Luis Borges e Susan Sontag. À primeira vista, pode nos parecer um texto confuso, insondável; mas conseguimos compreendê-lo se lermos devagar, tomando notas e relendo alguns trechos; não é uma obra para leitores preguiçosos. Relê-lo, então, é ainda mais proveitoso: li duas vezes e sei que ainda o lerei várias. As 150 páginas de Pedro Páramo são tão poucas quanto são ricas as reflexões que propiciam.