Marcelo Rissi 01/04/2023
Mário e o mágico (Thomas Mann)
A ficção antecipando a realidade. A realidade, por sua vez, confirmando a ficção.
Encerrei, há poucos dias, a leitura de Mário e o mágico, escrito pelo alemão ? filho de brasileira ? Thomas Mann em 1929 (mas publicado no ano subsequente, em 1930).
Ao fim dessa viagem literária épica, que tem curso numa novela de poucas, mas intensas páginas, registrei, numa publicação em rede social, o seguinte e breve comentário: cada obra de Thomas Mann que termino reafirma a minha preferência pelo autor.
Não à toa.
Adquiri Mário e o mágico recentemente, por indicação de um amigo, ávido leitor. Recomendação enfática e, aliás, direcionada: sugeriu-me ? esse meu amigo ? a aquisição do exemplar publicado pela editora Companhia das Letras. O motivo: a obra era provida de um rico e profundo posfácio, com contextualização e esclarecimento de diversos pontos enigmáticos da obra, sobretudo no que se refere à sua mensagem central (um tanto subliminar, recôndita nas suas entrelinhas).
Thomas Mann é o meu autor favorito. Não tardei, então, à aquisição. E, definitivamente, não me arrependi.
A obra é enxuta para os padrões do escritor: aproximadamente 60 (sessenta) páginas, incrementadas, na edição da Companhia das Letras, por mais 40 (quarenta) outras de um cirúrgico ? e, acrescento, necessário ? posfácio redigido por Marcus Vinícius Mazzari.
O enredo, se descontextualizado da conjuntura histórica e política ? de 1929 ?, parece despido de mensagem específica. Essa percepção, porém, é prontamente derruída ao compreendermos, com o necessário aprofundamento, o significado da representação figurada pelos atos do mordaz ilusionista Cipolla, personagem central da história.
A narrativa ? parcialmente autobiográfica ? inicia-se com a descrição do desagradável período de férias de uma família estrangeira em área costeira italiana (Torre di Venere). O núcleo familiar ? marido (narrador), esposa e filhos pequenos ? estava hospedado num hotel e, ao longo da estadia, sofreu discriminações de diversas naturezas, prejudicando o regozijo daquele período de repouso.
Logo ao início da estadia, a citada família foi impedida de participar das refeições em predeterminados locais do hotel (mais precisamente, nos recintos envidraçados e com vistas ao mar), sob o pretexto de que esses espaços eram reservados aos ?hóspedes?. Conforme, posteriormente, aquela família compreendeu, o termo ?hóspedes? designava, exclusivamente, os conterrâneos italianos, numa evidente e odiosa segregação baseada na origem e na nacionalidade.
Noutra cena, a família foi multada ? e, ainda, severamente repreendida ? quando a filha pequena, ao se limpar da areia impregnada em sua roupa de banho, desnudou-se na praia. O motivo da admoestação e da punição: essa ?gravíssima infração? violou a moral, com subversão da ordem e dos bons costumes locais. O contraste no tratamento foi, porém, escancarado, comparando-se a reação, um tanto cordial ? para se afirmar o mínimo ?, com comportamentos análogos, ou piores, praticados, em contextos semelhantes, por crianças italianas que ocupavam aquela praia.
Finalmente, o estopim: a família em questão, após o desfrute de aproximadamente 2/3 (dois terços) das férias, foi praticamente expulsa do hotel. O motivo: um dos filhos foi acometido por insistentes tosses. A vizinha de quarto, uma rainha, ouvindo os ruídos expelidos, convenceu-se, em interpretação pessoal e completamente leiga, de que o infante portava grave e contagiosa doença. Em razão disso, exigiu o afastamento, dos seus arredores, daquele núcleo familiar. Apesar do atendimento médico prontamente dispensado à criança ? com o profissional assegurando, em diagnóstico seguro e induvidoso, a ausência de qualquer moléstia séria e transmissível pela criança ?, a rainha, ainda refratária, foi irredutível, aferrada em sua autoritária deliberação. Diante dessas circunstâncias, que lhes eram completamente adversas, os estrangeiros deixaram o hotel.
Hospedando-se, então, em pensão situada em praia próxima, numa região intimista e mais vocacionada ao silêncio e à contemplação, a família recebeu, da respectiva proprietária ? e antiga funcionária do duce italiano ?, tratamento cordial e hospitaleiro. Não se permitiu ? aquela família ? que o desgosto há pouco sofrido maculasse o desfrute do período final das férias.
Durante os dias de estadia naquela pensão, a família soube de uma atração na cidade. O ilusionista e hipnotizador Cípolla instalou-se nos arredores para apresentação de seus enigmáticos números.
A família, embora receosa com a natureza da apresentação e, ainda, com o respectivo horário ? inapropriado às crianças ?, compareceu, por insistência dos ávidos e curiosos infantes.
O cerne do enredo de Mário e o mágico ? segmentado em cinco atos, segundo os estudiosos da obra ? desenvolveu-se, centralmente, nesse período, focando-o.
Cípolla, prestidigitador (palavra que aprendi nessa obra e que significa ilusionista), evidenciou-se, logo nos primeiros atos e números, uma pessoa mordaz. Ruim. Um embuste, na realidade. Um falsário que, com empáfia, e servindo-se de suas técnicas de desarranjo da atenção do público, desenvolvia números sórdidos com os participantes presentes, expondo-os, publicamente, à humilhação, ao escárnio e à zombaria.
A plateia ? formada, majoritariamente, por pessoas instruídas e intelectualmente privilegiadas daquela comunidade italiana ? prostrou-se absorta perante a seleção de cenas que sequenciavam ao palco. Os números eram desenvolvidos ininterruptamente ? com exceção de um intervalo, no entremeio ?, e executados invariavelmente à base do desprezo aos participantes, levado a dimensões embaraçosamente extremas.
O espetáculo encerrou-se tragicamente após um número de hipnose cujo efeito escapou, imprevisivelmente, ao roteiro do ilusionista. Não detalharei esse aspecto para não revelar spoilers.
Assim sintetizado o enredo, a compreensão de sua mensagem real reclama contextualização histórica, o que é auxiliado pela leitura do posfácio, cuja importância já foi repetidamente enfatizada.
À época da publicação da obra, críticos literários especializados atribuíram-lhe ? a Mário e o mágico ? importância POLÍTICA. O autor, refratário a essa categorização, preferiu classificá-la pela predominância da importância ESTÉTICA, tomando por base, assim, a sua simbologia e a sua representação, a partir dos atos do Cípolla.
Para facilitar a compreensão desses conceitos e da mensagem por trás da história, o posfácio traçou uma linha didaticamente clara, por etapas.
Como já salientado, a obra foi publicada em 1930, antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial (e, portanto, antes da completa ascensão do regime nazifascita de Hitler ao poder na Alemanha).
A obra em tela ambientou-se na Itália, onde, à época de sua publicação, o regime autoritário e fascista de Mussolini já espargia seus primeiros efeitos nocivos. Inseriu-se, então, nesse contexto ? do fascismo italiano ?, a representação estética da obra (segundo o autor): trata-se de uma alegoria, por meio da ficção, com advertência do que poderia ocorrer caso as pessoas ? inclusive aquelas instruídas ? entregassem-se à sedução de líderes mordazes, mas hábeis num discurso convincentemente enganoso.
O autor, captando, com argúcia, acurácia e de forma visionária, os riscos da concretização do autoritarismo ? que, à época, ainda não se materializara completamente, mas já disseminava indícios ?, publicou uma obra que tinha, ESTETICAMENTE ? ou seja, na REPRESENTAÇÃO simbólica, retratada por meio de um espetáculo de hipnose ? o risco, tão vulnerante, de enredamento de toda uma comunidade a partir de discursos enganosos e nocivos.
O próprio autor, porém, curvou-se, anos mais tarde, à categorização de sua obra como de importância POLÍTICA, pelos infelizes eventos históricos que lhe sucederam. A alegoria e a ficção, em Mário e o mágico, serviram como prova da hipótese e da simbologia contidas na própria obra. O nazifascismo eclodiu na Alemanha poucos anos depois, após o apoio popular galgado por um líder despreparado para qualquer ofício ou dom (como apontou o posfácio, um pretenso artista fracassado em suas inexistentes habilidades como pintor), atroz, mordaz, portentoso apenas na aptidão ao discurso malévolo, mas sedutor (à semelhança de Cípolla) aos predispostos à indigência moral e à atrofia intelectual. Arvorou-se, assim, no poder, não por talentos ou qualidades, mas pela capacidade ilusória de engodo. De ludibrio das massas. Ou, talvez, para sermos mais precisos: pela aptidão de avultar, em diversas pessoas, uma maldade nelas previamente já incubada e que apenas aguardava ativação.
O TEXTO do livro, ao longo dos anos, permaneceu o mesmo. A INTERPRETAÇÃO que se lhe pode ser conferida, porém, sofreu evidente mutação, em razão dos fatos históricos que sobrevieram, conforme admitiu o próprio autor.
À época da publicação, sobrepunha-se, a qualquer outro aspecto ? ao menos na visão de Thomas Mann ?, o interesse ESTÉTICO. É dizer: a representação simbólica dos riscos derivados de um discurso embusteiro, mas encantador, o que, em Mário e o mágico, foi figurado nos atos de Cípolla, o ilusionista, que, no palco, conduziu aquela imensa plateia ao transe, desprovendo-a de qualquer criticidade.
Posteriormente, a conotação POLÍTICA emprestada à obra evidenciou-se, clara e lamentavelmente, a partir dos fatos históricos sobrevindos. Cípolla, na personificação de Hitler, materializou-se no mundo tangível. Corporificou-se. Ludibriou (ou aguçou o pior na índole de) um povo até então vocacionado ao humanismo e à cultura, conforme enfatizado no próprio posfácio.
Teve, é certo, o mesmo fim trágico (?E um final, no entanto, libertador: não pude e não posso deixar de senti-lo assim!? ? última frase do livro), mas, nesse entremeio, infligiu as conhecidas atrocidades, legando um débito histórico jamais liquidável. Uma chaga que, apesar da lembrança pesarosa, não poderá ser esquecida, sobretudo para que eventos semelhantes não se repitam.
Nessa linha de raciocínio, e como novamente destacou o posfácio, o Nazifascimo encontrou seu termo final ao cabo da Segunda Guerra Mundial. O autoritarismo, porém, ainda esparge efeitos por iniciativa de alguns líderes e na voz de alguns discursos inflamados, mas sedutores (para algumas massas moralmente indigentes e intelectualmente atrofiadas). Isso, porém, é um grave risco. Eles, afinal, não são poucos. Não se pode, assim, oportunizar a negligência.
Pela lamentável confirmação histórica da ficção figurada em Mário e o mágico, fica a lição: sejamos sempre infensos contra quaisquer iniciativas vocacionadas (ou com tendências voltadas) ao autoritarismo, avessas à democracia, à pluralidade e os direitos fundamentais. Não basta a silenciosa oposição no íntimo recôndito da consciência. A ação é necessária. Afinal, a omissão e a negligência ocupam o lado do opressor. Nas palavras do autor, em trecho curto, mas com impactante cunho moral:
?É de presumir que não se pode viver psiquicamente do não querer; não querer fazer uma coisa não é, a longo prazo, um propósito de vida?.
Para encerrar, parece-me indispensável a reprodução de um trecho cirúrgico ? e impressionantemente atemporal ? da obra em análise, que serve de alerta:
?Um hipnotizador poderoso, que encontra as condições adequadas, é suficiente para fazer com que um povo inteiro dance ao estalar do seu chicote. Não tenhamos ilusões; o que resta a fazer é evitar que aquelas condições se repitam?.
Servia como prefiguração em 1929. Serve, hoje, como advertência.
Leitura absolutamente recomendada.