J.S. Fernandes 20/01/2019
A DURA SINCERIDADE DA LITERATURA INFANTIL
Além de adorar promoções (quem não adora?), recentemente procurei adquirir livros de gêneros diferentes dos que andei priorizando nos últimos dois anos.
Dentre eles figuram romances, romances policiais, ficções gerais e um infantil.
Nossa, mas literatura infantil?
Para o caso de “O Espantalho e seu Criado”, comprei-o não por estar na promoção especificamente, mas também pelo seu autor, Philip Pullman, conhecido pela sua trilogia “Fronteiras do Universo". A trilogia chegou a render uma adaptação cinematográfica homônima do primeiro volume em 2005, A Bússola de Ouro, que foi pessimamente recebido pela crítica e pelo público, comprometendo, assim, a produção das continuações.
Lembro-me, aliás, que li a trilogia por intermédio da biblioteca da minha cidade natal antes de assistir ao filme (e lembro também de não ter gostado muito dele).
De qualquer forma, não cheguei a me interessar sobre os outros trabalhos do autor na época. O tempo foi passando e Philip caiu no meu esquecimento até eu ver as republicações da trilogia pela editora Suma em 2017. O esquecimento foi tamanho que foi uma surpresa encontrar um nome conhecido entre os livros do saldão (de maioria esmagadora de desconhecidos e de títulos desinteressantes para mim, como biografias, receitas e livros de viagens que não tenho a menor ideia se um dia conseguirei fazer).
Entre tantos títulos de sangue e amor, achei também de bom tom adquirir algo que quebrasse esse clima, uma leitura de transição e de descanso entre tantas histórias mais sérias.
Sendo assim, depois do denso “O leopardo é um animal delicado”, de Marina Colasanti, resolvi dar uma pausa com a história de Pullman.
Em “O Espantalho e seu Criado”, Pullman conta as aventuras do menino Jack, o Criado, e do espantalho chamado... Espantalho.
O Espantalho foi feito por um velho fazendeiro chamado Pandolfo para, previsivelmente, espantar as aves das plantações de Spring Valley. Acontece que o Espantalho era tão bonito que rapidamente foi roubado por um dos vizinhos da propriedade, que por sua vez foi roubado pelo seu vizinho, que também foi roubado pelo seu vizinho... Até que, já tendo passado por tantas mãos, enfrentado tantas intempéries, se desgasta, fica feio, e vai parar num pântano para ser esquecido.
Mas um evento mágico acontece: o Espantalho é atingido por um raio e então — puff! — ganha vida.
E Jack é um menino órfão que, passando pelo pântano casualmente, percebe uma movimentação estranha e vai checá-la, afinal “não tinha nada de melhor para fazer”. Sem ter companheiros, comida ou trabalho, Jack aceita ser o Criado do Espantalho e juntos partem para o caminho de volta a Spring Valley, local que o Espantalho diz ser o herdeiro, embora ele mesmo não saiba explicar o motivo.
A narrativa se divide entre as aventuras do Espantalho e Jack e as andanças do advogado dos Buffaloni, família poderosíssima da região, que manda em tudo e em todos. Em uma dessas narrativas do advogado, ficamos sabendo que o velho Pandolfo havia morrido e que o próprio estava tentando encontrar o Espantalho para reaver tudo o que seus clientes enxergavam como propriedade de direito — a fazenda, os rios, as árvores e o próprio espantalho. Posteriormente, os pontos narrativos se unem para fechar direitinho a história.
Existe uma leveza e agilidade de narrativa neste livro que não encontrei em “O Dragão de Gelo”, uma fábula pertencente ao universo de “As Crônicas de Gelo e Fogo” de G.R.R. Martin e que foi planejada, escrita e vendida como livro infantil. “O Dragão de Gelo” é uma narrativa com ilustrações incríveis, mas que, ao meu ver, não funcionou exatamente para o público que se propôs a atender. Não chega a ter violência descrita de forma crua, como as próprias “Crônicas”, obviamente, mas dá para sentir toda uma atmosfera sombria e interações duras entre os membros da família, coerente com o universo, mas não com a faixa etária.
Então, em épocas que até os livros infantis estão mais adultos e violentos, como “O Dragão de Gelo”, foi um bálsamo ler “O Espantalho e seu Criado”.
Sabe aquela imagem clássica que temos de um pai, sentado ao lado da cama do filho, lendo uma historinha para fazê-lo dormir? Essa é uma das obras que poderia ser colocada nesse cenário.
A história em si é curta e com linguagem simples, coisas que se esperam de livros do gênero. A editora Objetiva teve cuidado com o título, utilizando uma fonte de tamanho médio para grande, que permite que uma criança, quando sozinha, leia com mais facilidade (ou que ela leia junto aos pais), além de trazer quase todas as páginas ilustradas. As folhas são amareladas e causam uma sensação de comodidade na hora da leitura.
O Espantalho é um camarada gentil, com paixão pela aventura e um cérebro — literalmente — de ervilha. Suas atitudes bizarras e sua nobreza lembram muito outra figura conhecidíssima da literatura, Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes. Jack é o escudeiro que tenta incutir responsabilidade e pensamento crítico no companheiro (falhando sempre) entre uma roncada e outra da barriga.
As aventuras são permeadas de muito bom humor e ensinamentos sobre amizade, amor, compreensão, honestidade e coragem, todos intercalados nas interações do Espantalho e de Jack com habitantes locais, vassouras esbeltas, grupos teatrais, pássaros falantes e guerras.
Mas não pense que tudo são flores. Pullman, de uma maneira bem sutil, deu um jeito de inserir críticas a sociedade e ao comportamento das pessoas, alguns deles independentes das influências e ameaças dos Buffaloni.
Caso você tenha oportunidade, permita-se quebrar o ciclo de leituras adultas e consumir materiais mais leves. Se tem uma coisa que percebemos depois de envelhecer é o quanto (e como) as histórias infantis podem ensinar sobre comportamentos tóxicos. A maneira geralmente sutil que esses elementos são colocados podem passar desapercebidas pela mente de uma criança, mas são facilmente compreendidas pelos mais velhos — e, por alguma razão, a linguagem simples deixa-as ainda mais condenáveis e cruéis.
“O Espantalho e seu Criado”, portanto, trata-se de uma leitura recomendada e, sem dúvida, um achado na sessão de promoções.
site: https://araposanalista.blogspot.com/2019/01/a-raposa-resenha-002-o-espantalho-e-seu.html