spoiler visualizarZelinha.Rossi 26/01/2017
Um grande clássico da literatura mundial, “O vermelho e o negro” traz a história de Julien Sorel, um filho de carpinteiro extremamente ambicioso que pretende melhorar seu nível social a qualquer custo. Extremamente meticuloso, Julien analisa, desde o início da obra, suas possibilidades: uma vez que, com o fim da era napoleônica, o exército (o vermelho) deixara de ser opção para possibilitar a ascensão social, o que lhe resta é tentar alçar uma carreira eclesiástica (o negro). Julien é um personagem extremamente estudioso, perspicaz e inteligente, planeja minimamente todos os seus atos, além de extremamente orgulhoso. O livro é um romance psicológico, uma vez que o foco do autor reside no pensamento das personagens. E é por meio de tais pensamentos, especialmente o de Julien, que conhecemos a sociedade francesa pós-napoleônica: extremamente hipócrita, totalmente centrada no dinheiro, uma sociedade em que os ricos devem ser a todo instante admirados e respeitados, mas que, em sua essência, é vazia: vemos por exemplo, nos personagens de Valenod e do sr. de Rênal, uma preocupação constante com assuntos mesquinhos, com a opinião alheia, com o ridículo, enquanto sua capacidade intelectual se mostrava extremamente fraca. Mesmo em Paris, grande centro cultural francês, isso também se mostra, como nos bailes em que a futilidade e o tédio imperam. Julien, portanto, sente-se injustiçado: como alguém com sua capacidade era tão desprezado por sua origem humilde enquanto personalidades vazias intelectualmente ocupavam os elevados níveis sociais e o humilhavam?
No caminho da ascensão, Julien inicialmente atua como preceptor dos filhos do prefeito da cidade de Verriéres, sr. de Rênal, devido à sua inteligência e suposta espiritualidade (a qual, na verdade, é inexistente e foi desenvolvida apenas para que pudesse chegar ao meio que acreditava garantir sua melhoria de vida, a vida de padre), depois ruma para o seminário devido à descoberta de seu romance com a sra. de Rênal (onde sofre por parte de seus colegas, pobres de espírito e inteligência que vêem no pertencimento ao clero a possibilidade de comer e viver melhor) e finalmente, pelo intermédio de um padre ex-diretor do seminário (padre Pirard), alcança a posição de secretário de um aristocrata parisiense, o sr. de la Mole.
O orgulho e o ódio do protagonista influenciam fortemente seus sentimentos amorosos: na província de Verriéres, com a sra. de Rênal, vemos um menino imaturo, que inicialmente decide conquistá-la por puro capricho, mas que acaba apaixonando-se por uma mulher amedrontada pela religião e os possíveis castigos que poderiam se abater sobre seus filhos por conta de seu romance extraconjugal. Em Paris, conhece uma mulher tão orgulhosa quanto si mesmo, Mathilde, a filha do sr. de la Mole. Mulher inicialmente forte, estudiosa, inteligente e entediada pela vida dos salões e pelos homens que lhe cortejavam, Mathilde se apaixona por Julien, mas seguidamente o ama e depois o rejeita por sua origem humilde. É por Mathilde que Julien trava o que podemos considerar a grande batalha de sua vida; é pela orgulho dela que ele sofre inexoravelmente; é a ela que ele despreza quando a vê perdidamente apaixonada. Aliás, Julien parece só valorizar a quem lhe despreza: ama Mathilde quando ela o desdenha, ama a senhora de Rênal após tentar matá-la pela carta que enviou ao sr. de la Mole denunciando sua ambição.
Aparentemente, o único fator a tornar Julien feliz (ou a lhe dar satisfação, uma vez que é impossível saber se um caráter como o do protagonista pode encontrar a verdadeira felicidade em algo) é se ver admirado, talvez por ele mesmo não ser capaz disto, já que nunca deixou de ter vergonha de sua origem. Isto acontece em alguns momentos da trama: na disputa de outros ricos personagens de Verriéres para que ele se torne preceptor de seus filhos, no amor-adoração devotado a ele pela senhora de Rênal e por Mathilde e na admiração que inspirou à população de Besançon por ocasião de sua condenação à morte.
A crítica que o autor faz à hipocrisia da sociedade persiste ainda hoje. Um dos melhores momentos da obra é o momento em que Julien, durante seu julgamento por tentar matar a sra. de Rênal, declara que não está sendo julgado e condenado à morte pelos crimes que cometeu, mas sim pelo fato de ser um pobre filho de carpinteiro que decidiu ascender socialmente, algo que os aristocratas da época jamais conseguiriam conceber.
“O vermelho e o negro" foi para mim uma obra maravilhosa. Confesso que demorei bastante a me empolgar pela leitura, mas creio que isto é normal no contato com uma obra do início do século XIX. Em nosso cotidiano, estamos acostumados com a agilidade da ocorrência dos fatos, e queremos que isto também se estenda ao que lemos. Por isso um livro não baseado em uma profusão de fatos e viradas na história, e sim em pensamentos não empolga tanto. No entanto, foi excelente a decisão de persistir na leitura e poder chegar ao fim da obra, porque me permitiu uma análise melhor do porquê a história sobreviveu ao teste do tempo. Muitos temas ainda são atuais, e cito aqui três deles: a valoração das pessoas pelo ter e não pelo ser, a revolta contra aqueles que querem mudar a realidade e ascender socialmente (no momento atual vivido em nosso país, muitas vezes percebemos uma revolta que muitos demonstram contra os programas sociais implantados nos últimos anos para propiciar a ascensão social de muitos gruops desfavorecidos) e a enorme complexidade da mente humana (Julien amava a senhora de Renal, Mathilde ou tão somente a si próprio? Ou ainda, amava apenas o fato de alguém demonstrar amor por ele, já que o orgulho e a revolta tomavam conta de seus sentimentos de tal forma que era completamente incapaz de amar a si e projetava para os outros essa necessidade?)... Enfim, há muito para se pensar e discutir sobre a obra.