J.Jardini 11/01/2016
Identidade em Crise: uma resenha crítica de O Vermelho e o Negro
Em O Vermelho e o Negro, a princípio, Stendhal nos remete ao habitual ambiente bucólico consagrado pelo movimento romântico do século XIX. Julien Sorel, seu personagem, se mostra, à priori, como um um ente frágil e disperso; um verdadeiro sujeito fragmentado em seu ainda não totalmente desenvolvido processo de individuação; aquele através do qual concretiza-se identidade própria através do devir, da superação das contradições enfrentadas bem como das experiências vividas, no incorrer da maturidade.
A perspicácia de Stendhal sugere-nos, em nítido e expresso conteúdo filosófico permeado em sua obra, não o retrato móvel - e quiçá espalhafatoso - de uma crise identitária mas sim, mais precisamente, faz-nos apreender em seus diversos momentos, as idas e vindas não só de uma consciência moralmente instável mas, de uma verdadeira identidade em crise.
Tal fato teria seu subsídio no truculento ambiente familiar de Julien Sorel. Este, vítima de abusos físicos e psicológicos por parte de seu pai e irmãos, lhe é imposta à livre definição de sua individualidade, uma conflituosa flutuação entre a reprovação de seu comportamento e a violência à ele dirigida por sua aparente “natureza frágil”; destacadamente, frente à primazia de sua inteligência, uma franca dissonância para com os árduos trabalhos braçais da madeireira de seu pai, o velho Sorel.
Esta identidade em crise, absolutamente inseparável da trama principal, coloca à este jovem rapaz, intencionalmente deslocante, sempre imerso em uma noção de movimento, momentos que caracterizam rupturas; deixar sua família, o distanciamento para com o ideal de Napoleão, incursões e dispersões apaixonadas em relação à mulheres, constantes viagens e um incerto câmbio dos meios pelos quais atingirá seus sonhos e Desejos. Este quadro de rupturas fornecerá, esta matéria prima a qual, ao desenrolar de seus momentos culminantes, em desfechos que acompanham ao passo que desafiam o gênero romântico, agem quase como degraus que o elevam a garantir-se personalidade e se tornar um Ser que na medida em que progride torna-se cada vez mais complexo e autêntico.
Este atualizar constante da personalidade e das vontades de Sorel torna toda a história proposta numa inebriante mistura de drama e tragédia; uma progressão rumo à edificação de uma autêntica e marcante personalidade, verdadeira oscilação que entre o Vermelho e o Negro, sobressai-se um Sorel cada vez mais certo de si.
Stendhal não economiza adentrar aos rincões mais obscuros da consciência humana; ganância, joguetes de poder, orgulho, vaidade, prepotência, hipocrisia. Todo entre aprofundamento psicológico meio às podridões moralmente reprováveis da alma humana é marca de um estilo crítico, livre e necessário para com a naturalidade de sua proposta, através de uma sutil, quase gramatical ironia, estes conflitos constituem nada mais do que a própria realidade destituída de grandes alardes. O ser humano emerge aqui, destacadamente em Julien Sorel, como essencial e moralmente relativista, composto de uma intrincada síntese de diversos predicados os quais conferem à obra como um todo, uma verdadeira representação universal.
Neste sentido, a artificialidade própria dos salões franceses ou mesmo o evidente jogo de interesses subordinados da aristocracia provinciana em seus âmbitos propriamente ditos são determinantes; são como verdadeiras exteriorizações desta complexa e contraditória amálgama que o consciente romântico de Stendhal propõe à nossa observação.
Stendhal, como dito, parte de um cenário comum pertencente à uma literatura já há muito explorada e difundida. No entanto, ilustra sua destreza ao integrar, à plenitude de um descritivismo equilibrado, um cativante novíssimo frescor ao roteiro do que seria uma narrativa já esperada. Stendhal adiciona à fórmula romântica um crescendo exponencial de profundidade, bom senso, complexidade e de um imersivo sentimento em constante catarse, o qual perpassa-nos a saga do jovem Sorel.
Este, longe de se enquadrar em moldes de herói romântico, quebra totalmente com as preconizações de estilo e gênero ao ser posto como um ente falho, vítima de uma consciência que oscila entre uma despretensa leveza e o martírio sobre a retenção de suas angústias frentes à impulsividade e o imperativo absolutamente incontingente de seus interesses ideais e carnais.
Sorel longe de quitar-se completamente à uma ‘’futilidade do mundo” e imergir em uma angústia existencial própria, incorpora em si mesmo as mais superficiais vaidades e, assim, denota-se marcante em sua personalidade, a despeito de suas incumbências religiosas, uma cumplicidade para com as paixões mais terrenas, as quais afirmam em si, um caráter egocêntrico, passional e claro, profundamente hedonista. Seu percurso, ao transcorrer da obra, longe de ser maçante e retilíneo é inundado por atentas percepções e articuladas estratégias. Em interessantíssimas digressões de pensamento tomadas das atentas observações de Sorel ou mesmo na figura de um suposto filósofo, estabelecem-se francas interlocuções as quais é confuso afirmar se é Sorel ou o próprio Stendhal que que nos conecta à uma ponte direta entre o desenvolvimento da trama e a necessária detenção de seus momentos específicos, para com o leitor, em uma reflexão quase como conjunta.
Define-se, então, uma marca de estilo autêntica que pela simplicidade empregada em todo seu vocabulário, em sua divisão piedosa de capítulos, e ausência de escrúpulos quanto ao ordinário, qualifica esta obra como uma leitura densa e profunda ao passo que fluida e apreensiva.
Toda a proposta literária elaborada por Stendhal estabelece-se em alicerces que constituem um aprofundamento gradualmente intenso da trama psicológica que se prescreve. Um aglomerado denso, cativante e emocionalmente carregado se traduz não só durante toda a trama mas, destacadamente, ao seu final, num sentimento de profundo êxtase, identificação e eterna separação para com Julien Sorel. Neste ponto, este crítico em específico, acredita em uma interessante aproximação não só da exploração do âmbito moral e imoral em questões práticas bem como toda a edificação constitutiva de Julien Sorel como uma curiosa ressonância entre este mesmo e Willhelm Meister, do romance de formação Os Anos de Aprendizagem de Willhelhm Meister, de Goethe.
Destacando assim, em suas devidas proporções, a profundidade desta obra prima de Stendhal, não obstante, ter-se qualificado como uma das Imortais da Literatura Universal justamente, frente á universalidade e destreza com as quais Stendhal pinta, com científicas dissecações e matizes estudadas, a natureza do ser humano.
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