Lucas 02/06/2018
Hipocrisia e materialidade: Os principais ingredientes da degradação moral e psicológica
Henri-Marie Beyle (1783-1842) é um nome obscuro no mundo literário. Não que lhe faltasse talento; apenas não seria apropriado que um francês republicano assinasse obras que contestavam violentamente a Restauração Francesa (1814-1830). Por esse motivo e outros mais turvos, esse errante francês viveu em diversas regiões da Europa, criando ensaios e obras de estilo seco e psicológico que caracterizam a escrita de Stendhal, alcunha que acabou acompanhando-o na eternidade literária.
A grande obra de Stendhal é O Vermelho e o Negro, de 1830, lançada num período de grande turbulência na França: a chamada Revolução de Julho, que pôs fim à monarquia restabelecida com a queda definitiva de Napoleão Bonaparte. A "revolução das barricadas", que tão bem é descrita por Victor Hugo nos últimos volumes de Os Miseráveis (1862), adquire importância no último terço da obra-prima de Stendhal, o que reforça o tom político que ela adquire.
Isso porque, ao se olhar a trajetória de vida do autor e as ideias do protagonista da obra, o carpinteiro Julien Sorel, percebe-se claramente que Stendhal desembocou em seu personagem principal muitos dos ideais nas quais ele defendia, como a República, um eterno senso de condenação à burguesia e a admiração a Napoleão Bonaparte. Este último ideal, inclusive, era considerado um crime grave aos bons costumes da época, já que as tragédias que envolveram o final do império napoleônico (principalmente a desastrosa invasão à Rússia em 1812) eram ainda muito recentes a uma classe superior acostumada às benesses do regime monárquico então restaurado.
Diante de tais particularidades, Stendhal desenvolve a história de Julien Sorel, um pobre filho de carpinteiro, nascido em Verrières, um pequeno distrito da cidade de Besançon, importante centro urbano do leste francês (terra natal do já citado Victor Hugo). Além da já mencionada pobreza, Sorel vivia em uma atmosfera cercada de aspereza e sem nenhum tipo de sensibilidade, que fazia dele, caçula numa família com dois irmãos, um ser inútil. Nestes momentos iniciais, Stendhal destaca com classe o preconceito que homens "letrados" possuíam num meio rural, onde a força bruta e o trabalho incessante eram armas de muito mais valia que a instrução. O garoto, inicialmente com 20 anos, cresce com certa mágoa em função dos seus sofrimentos (até físicos), o que ajuda a explicar o seu caráter futuro.
Julien só encontrava felicidade nos livros e era, em parte, protegido pelo curado que havia na região. Ele desfrutava de um "absurdo" inimaginável para pessoas de sua classe social: tinha aulas particulares com um vigário, que lhe ensinou tudo o que poderia ser repassado sobre temas litúrgicos e bíblicos. Além da Bíblia, Sorel adorava obras históricas de cunho militar, especialmente as que ressaltavam a habilidade de Napoleão no campo de batalha. Sua aplicação e inteligência eram tão grandes que acabaram conduzindo-o ao cargo de preceptor dos filhos do prefeito do distrito, não sem antes uma negociação financeira acirrada entre seu pai e o seu futuro patrão, o senhor de Rênal.
Esta mudança para um meio social mais superior é a marca do primeiro tomo (o livro foi dividido em dois tomos) de O Vermelho e o Negro. Dono de uma inegável inteligência racional, Sorel logo adquire a confiança de todos os frequentadores da residência (inclusive da esposa do prefeito, a senhora de Rênal), que constrói outro traço marcante do seu caráter no futuro: a arrogância, que alimenta ódio a pessoas "estúpidas", mas de classe superior. Esta compreensão, no presente, o faz ser menos retraído, o que lhe causa imensas perturbações. Alguns acontecimentos fortuitos acabam conduzindo o humilde provinciano a Paris, algo inimaginável para alguém na sua condição e que inicia a segunda parte da narrativa.
Lá ele se torna uma espécie de secretário do Marquês de La Mole, um legitimista ligado à monarquia e que, portanto, representa o seu diâmetro oposto em ideais políticos. Rico, frequenta e é anfitrião de vários eventos sociais da corte francesa, assim como a esposa e os dois filhos: o esnobe Norbert e a bela Mathilde. Como no primeiro tomo, Julien é acometido de perturbações da mesma natureza, relacionadas a sua presunção e inteligência superior, que o faz ser de extrema confiança do senhor de La Mole.
O fato de trabalhar e conviver com pessoas nas quais Julien tem mais ira é insumo para inúmeros exames de consciência. Neste segundo tomo, há vários diálogos, mas a maioria deles ocorre apenas na mente dos personagens. São reflexões, os prós e contras de determinadas atitudes, julgamentos, preconceitos exacerbados, entre outros, que caracterizam O Vermelho e o Negro como uma das primeiras obras realistas da história da literatura, mantendo a veia romântica da época, mesmo que deixando-a num segundo plano. O foco da narrativa é psicológico: tem-se em Stendhal um autor muito mais preocupado em descrever todos os campos da consciência dos principais personagens em detrimento de aspectos mais objetivos, como as aparências físicas de locais, roupas e de pessoas. E estes autoexames de consciência ocorrem sobre os mais diversos temas: o casamento, a hipocrisia das relações entre jovens, a importância primordial da classe social ante a todas as outras características de caráter, o amor, ora louco, ora cego, ora possessivo, ora repulsivo, etc.
A publicação da obra não trouxe grande estardalhaço no cenário da literatura francesa da época. Strendhal, antes mesmo de falecer vítima do que hoje se chama AVC, previa que suas obras só seriam reconhecidas após a sua morte, o que de fato ocorreu. Mas há indícios de que um dos maiores escritores franceses de todos os tempos, Honoré de Balzac (1799-1850), tenha tecido elogios aos trabalhos do seu conterrâneo obscuro. Prova maior desse reconhecimento, e até mesmo influência, está em Ilusões Perdidas (lançado entre 1836 e 1843), principal obra da monumental A Comédia Humana, que reunia todos os trabalhos da sua vida. A semelhança temática entre este livro e O Vermelho e o Negro salta aos olhos: ambos tratam de um jovem provinciano que tenta a vida em Paris, corrompendo-se em vários aspectos em nome do poder e status social. Mas, analisando-se outros tópicos, a semelhança não é tão destacável: a formação e influência familiar dos protagonistas são bem diferentes; a obra de Balzac é mais abrangente ao iluminar a hipocrisia da alta sociedade enquanto que Stendhal direciona sua narrativa para um círculo menor de relações, sempre tendo Julien Sorel como elemento central; as ambições destes mesmos protagonistas são bem diferentes; O Vermelho e o Negro traça elementos de maior inocência frente à crueldade do mundo real de Paris, enquanto que Ilusões Perdidas direciona essa mesma ingenuidade ao mundo midiático (notícias compradas em jornais, trocas de favores, etc.), entre outros pontos divergentes.
Talvez o principal aspecto que diferencia uma obra da outra está na finalidade com que cada um foi construído: Ilusões Perdidas é apenas uma parte de algo muito maior, a já citada A Comédia Humana. Não é uma narrativa que se resolve totalmente em si mesma, pois seu desfecho se mescla às outras obras da "enciclopédia social" de Balzac. Já O Vermelho e o Negro é mais "redondo" nesse ponto, oferecendo um desfecho que se torna previsível a partir de dois acontecimentos totalmente inesperados que ocorrem na última centena de páginas. O fim, que acaba se desenhando como esperado, é repleto de niilismo, crises psicológicas, amores doentios, etc. É uma mescla de cruezas realistas frente a um contexto que estava longe de ser o ideal.
A origem do título é fonte de controvérsias, mas a versão mais aceita trata da principal característica do livro: um jovem que busca ora ser um clérigo (manto negro) ou um soldado do exército (que vestia vermelho). E, ao buscar ser uma das duas coisas, Julien Sorel não consegue se encontrar tão facilmente nessa realidade, marcada pela hipocrisia e pelo status social. Mas a habilidade de Stendhal ao narrar as decadências morais que este meio materialista causa, o tornou, apesar da obscuridade, um dos grandes escritores do seu tempo.