João 09/05/2020
Viagem ao Rosaverso
Não estava nos meus planos ler Guimarães Rosa. Então por que lê-lo? JCR é uma grande referência, e não só literária. Nos últimos meses vinha percebendo que seu nome sempre era citado em programas que assisto, podcasts que ouço, citado por personalidades que admiro... então por que não? A obra de iniciação foi escolhida por dois motivos: ela já estava na minha estante (desde 2015) e foi indicada como uma boa obra para começar a leitura de Rosa por um podcast do Nexo Jornal.
Neste ponto eu discordo. Você também quer começar a ler JCR? Eu aconselharia a começar por uma (ou algumas) dessas primeiras estórias, mas não a obra completa. A principal coisa que aprendi nos últimos dias lendo este livro é que Primeiras Estórias é um grande exercício de interpretação (e temo que as demais obras do autor também o sejam). Não só pelos neologismos, aos quais o autor é amplamente conhecido, mas pela construção da linguagem. E como todo exercício, você precisa de ferramentas para auxiliar seu trabalho. Eu descobri ao longo das leituras que eu precisava do silêncio, que precisa minimizar as distrações, que um parágrafo pode demorar mais de 10 min para ser compreendido, que tem passagens que só conseguem fazer sentido quando lidas em voz alta e que muitas vezes vou precisar reler ou procurar textos de apoio e depois reler para chegar à compreensão.
É cansativo ler Primeiras Estórias. Por isso aconselho a começar aos poucos. Eu decidi ler apenas 3 contos por dia (dos 21), em média 20 a 30 páginas. Talvez fosse melhor ter lido com menor frequência. O esforço que essa obra demanda pra ser compreendida tirava um pouco o prazer da leitura. Mas ler uma grande referência por si só já era prazeroso.
Os contos na maioria das vezes têm uma introdução nebulosa, demora-se para o leitor entender do que aquela estória se trata. O próprio autor se justifica no conto O Espelho, pela voz do seu eu-lírico: “sou um mau contador, precipitando-me [...] e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres na frente dos bois. Releve-me. E deixe que o final do meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.” Então, principalmente nos contos mais longos, a sua resistência acaba sendo testada, por que você lê uma... duas... três! páginas sem fazer ideia do que está acontecendo, como ocorre no conto Nada e a nossa condição.
O grande trunfo desse livro é sua capacidade de nos levar a uma viagem. Ele transmite visões, sons e aromas. Embora a forma desconstruída de narrar de Guimarães não tenha um padrão descritivo claro (ele apenas solta elementos que compõe a descrição do seu microuniverso), o que ele nos oferece é suficiente pra compor o cenário na nossa cabeça, principalmente se você tiver vivência em cidade pequena e conhecer paisagens rurais. Pois o elemento que une todas essas estórias são o espaço que ela permeia, em sua maioria são contos rurais ou em microcidades, tratando de temas que recorrem (a morte, a loucura, a saudade...) através da simplicidade das situações. De fato, como diz o próprio autor “tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, existe um milagre que não estamos vendo”.
E pelo estilo do autor de não compor enredos redondos, o leitor acaba entrando como coautor de muitas histórias, porque é ele quem vai muitas vezes escrever um prologo ou um epílogo, através da sua interpretação do que ele quer passar. É o que ocorre no célebre “A terceira margem do rio”, que é por muitos tido como o maior conto de João Guimarães Rosa. [Outro ponto que eu discordo, “O Espelho” foi o conto que eu julguei mais brilhante.]
Então, se no seu microcosmo, João Guimarães Rosa também uma grande referência e você quer começar a entender algumas delas, eu sugiro que comece lendo uma estória ou outra, se familiarizando um pouco, para depois imergir completamente. As margens da alegria, Famigerado, Sequencia e Um moço muito branco são boas estórias para iniciar, pois possuem uma estrutura um pouco similar e uma linguagem menos carregada. Para aprofundar, as joias da coroa de Grandes Estórias com certeza são A menina de lá, A terceira margem do rio, O espelho e Darandina.
Em muitos contos você vai precisar vencer a barreira da interpretação difícil para alças a contemplação da beleza do nada e da ausência dos fatos, mas, certamente, através desse exercício, você formará durante essa leitura sinapses que ainda hão de fazer bem nas leituras subsequentes.
Bom exercício!