Carla.Parreira 01/11/2023
Os irmãos Karamázov
Escrito em terceira pessoa, o livro tem um enredo que se desenrola em torno da família Karamázov. O pai, Fiódor Pavlovitch Karamázov é um viúvo de duas mulheres. Um homem de seus cinquenta e tantos anos; de situação financeira um tanto abastarda. Um beberrão despudorado, mentiroso, vil e sovino, embora esbanjador quando se trata dos seus prazeres. Mau marido, mau pai, enfim, um mau exemplo de pessoa. Porém, o personagem não nos deixa odiá-lo de todo. Talvez, por ele ser tremendamente engraçado e parecer fazer de suas palhaçadas sua autopunição pública. Com a primeira mulher, Fiódor teve o filho Dmitri Fiodorovitch. Com a segunda mulher ele teve outros dois filhos: Ivan e Aliêksei, mais conhecido como Aliócha. Os filhos, logo na infância, são retirados de sua casa e criados por terceiros após a morte da segunda mulher. Jovens, eles retornam à casa do pai, cada qual por seu motivo (mesmo sem saberem qual seja) e aí começam as confusões, pois o pai é uma pessoa tremendamente desagradável e a convivência com ele é difícil. Também há uma barreira a ser vencida entre os irmãos, pois praticamente eles são estranhos entre si. Ivan é intelectual e ateu. Ele evita se envolver emocionalmente e de forma direta nas questões familiares, sendo o que menos sabe do porquê de sua volta à casa paterna. Sua frieza é um tanto forçada por si mesmo. De certo modo, parece que ele retorna a casa do pai buscando reencontrar-se consigo mesmo através da sua família, ou seja, querendo encontrar ali as respostas para as suas questões existenciais. Sendo filosófico e especulativo, mostra-se no livro como um pensador livre que parece ironizar todos os sistemas religiosos ou filosóficos. Ele flerta com o ateísmo, mas discute teologia de igual para igual com Aliócha, que é o irmão caçula e aspira entrar para um monastério russo. Dmitri, o filho mais velho, é um ex-oficial do exercito e tem a personalidade um tanto semelhante ao do pai. Ele é noivo de uma moça, porém quer deixá-la após apaixonar-se por Grúchenka, uma jovem mulher de má fama e reputação duvidosa, a qual tem envolvimento com seu pai. O livro não coloca, contudo, Dmitri como um homem desonrado.
Dmitri exige uma parte da herança, alegando não tê-la recebido. Seu pai marca uma reunião no mosteiro para que o Zossima, um monge, líder do mosteiro e mentor espiritual de Aliócha, seja interventor dessa questão de herança. Por trás da questão do dinheiro também está à disputa pela mesma mulher. Como esperado, a coisa não termina bem. Quando Fiódor, o patriarca dos Karamázov, é assassinado nesse encontro, Dmitri surge como o principal suspeito. Questões morais ganham uma premência incontornável, que atormentam a todos. É em torno disso que a temática do livro se desenvolve enfatizando virtudes e defeitos, referenciando a humanidade toda no que ela tem de mais sublime e torpe. O livro levanta questões sociais e políticas do povo russo. A religião é abordada abertamente. O livro enfatiza uma espécie de anseio por um ?acerto de contas? com o divino. O capítulo intitulado como o grande inquisidor é um dos exemplos disso, pois o autor critica duramente os sacerdotes. O texto se dá através de uma conversa entre Ivan (o ateu) e Aliócha (o seminarista). Ivan escreve um poema (que não está em versus), no qual Jesus retorna a Terra, em Sevilha, no século XVI, e acaba preso pela inquisição espanhola. Quando o grande inquisidor o liberta, Cristo permanece calado e, antes de sair da cela, beija o inquisidor nos lábios. Em um dado momento da conversa, Aliócha beija o irmão imitando o Cristo do poema. Ele faz isso porque o irmão diz que vai partir e certamente não tornarão a ver-se tão cedo. É desta obra que surgiu a tão conhecida frase: ?Se Deus não existe, tudo é permitido?. Esta é a ideia central sobre a temática religiosa que Dostoievski trata na obra. Eis alguns trechos do livro que mais gostei: ?...Sabei que não há nada mais elevado, nem mais forte, nem mais saudável, nem doravante mais útil para a vida que uma boa lembrança, sobretudo aquela trazia ainda na infância, da casa paterna. Muitos vos falam de vossa educação, mas uma lembrança maravilhosa, sagrada, conservada desde a infância, pode ser a melhor educação. Se o homem traz consigo muitas destas lembranças para sua vida, está salvo pelo resto da existência... O homem realmente inventou Deus. E o estranho, o surpreendente, não seria o fato de Deus realmente existir; o que, porém, surpreende, é que essa ideia ? a ideia da necessidade de Deus ? possa ter subido à cabeça de um animal tão selvagem e perverso como o homem... De fato, às vezes se fala da crueldade bestial do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente, tão esteticamente cruel... Acho que se o diabo não existe e, portanto, o homem o criou, então o criou à sua imagem e semelhança... Aquele que mente a si mesmo e escuta sua própria mentira vai ao ponto de não mais distinguir a verdade, nem em si, nem em torno de si; perde pois o respeito de si e dos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar; e para se ocupar, e para se distrair, na ausência de amor, entrega-se às paixões e aos gozos grosseiros; chega até a bestialidade em seus vícios, e tudo isso provém da mentira contínua a si mesmo e aos outros. Aquele que mente a si mesmo pode ser o primeiro a ofender-se. É por vezes bastante agradável ofender a si mesmo, não é verdade? Um indivíduo sabe que ninguém o ofendeu, mas que ele mesmo forjou uma ofensa e mente para embelezar, engrandecendo de propósito o quadro... Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos. Muitas vezes tenho sonhado apaixonadamente em servir à humanidade, e talvez tivesse verdadeiramente subido ao calvário por meus semelhantes, se tivesse sido preciso, muito embora não possa viver com ninguém dois dias no mesmo quarto. Seio por experiência. Desde que alguém está junto de mim, sua personalidade oprime meu amor-próprio e constrange minha liberdade. Em 24 horas, posso mesmo antipatizar com as melhores pessoas: uma, porque fica muito tempo na mesa, outra, porque está resfriada e só faz espirrar. Torno-me o inimigo, dos homens, apenas se acham eles em contato comigo. Em compensação, invariavelmente, quanto mais detesto as pessoas em particular, tanto mais ardo de amor pela humanidade em geral... Quanto mais tolo, mais claro. A tolice é concisa e sem armadilhas, enquanto a inteligência dá muitas voltas e nunca chega ao ponto certo. A inteligência é desleal; a tolice é honesta e vai direto ao assunto... Os ciumentos são os primeiros a perdoar, todas as mulheres sabem disso. Perdoariam (após uma cena terrível, bem entendido) uma traição quase flagrante, os abraços e beijos de que foram testemunhas, se fosse à derradeira vez, se seu rival desaparecesse, partisse para o fim do mundo e eles mesmos partissem com a bem-amada para um lugar onde ela não tornaria a encontrar mais o outro. A reconciliação, naturalmente, não é senão de curta duração, porque na ausência de um rival o ciumento inventaria um segundo. Ora, que vale tal amor, objeto de uma vigilância incessante? Mas um verdadeiro ciumento não o compreenderá nunca. Há, no entanto, entre eles, pessoas de sentimentos elevados e, coisa de espantar, quando se acham eles à escuta num esconderijo, ao mesmo tempo que compreendem a vergonha de sua conduta, não experimentam no momento nenhum remorso...?