Felipe Soares 19/08/2012
Do cult ao pop - www.sincopedigital.com.br
Faz mais de três anos que ouvi falar pela primeira vez de A Guerra dos Tronos. O livro vinha causando um burburinho no meio literário em razão das inovações que trazia. A literatura, principalmente a fantástica, sofre do mesmo mal que assola outros meios de entretenimento: a falta de novas histórias e temáticas. Costuma-se pensar que a Fantasia é um gênero voltado principalmente para o público infantil, na maioria das vezes considerado pouco exigente . Mas até as crianças crescem e cansam das mesmas coisas.
A literatura fantástica parece se resumir a dois tipos de livros: aquele que redefinem o gênero, mas são fadados ao esquecimento, e milhões de cópias baratas dos clássicos que fizeram sucesso. Acontece que dento da primeira categoria A Guerra dos Tronos foi exceção, a ponto de agradar aos produtores da HBO, que logo se encarregaram de produzir uma série televisiva.
No Brasil, não havia previsão de publicação dos livros. Mas Rapahel Draccon, hoje um dos maiores autores do gênero no país, convenceu a Editora Leya, que já publicara com sucesso sua série Dragões de Éter, a trazer As Crônicas de Gelo e Fogo para nós. Tudo ocorreu no momento oportuno. O livro chegou em 2010 como uma readaptação para o português do Brasil da tradução feita por Jorge Candeias em Portugal. Foi sucesso instantâneo. E de literatura cult, A Guerra dos Tronos passou a ser livro pop.
O enredo fala de Westeros, uma espécie de Europa Medieval, habitada por diversas famílias que vivem em constante guerra por aquele que parece ser o bem mais precioso do reino: o Trono de Ferro, ocupado por Robert Baratheon, que, após a morte de Jon Arryn, a Mão do Rei, homem de sua maior confiança, segue em direção ao Norte, para oferecer a seu velho amigo Eddard Stark, patriarca da família Stark e protetor do Norte, o cargo temporariamente vazio.
As estações tem duração diferente em Westeros, onde o verão foi o mais longo dos últimos anos, mas o inverno está chegando e com ele vem as estranhas criaturas que vivem além da Muralha. Construída há muitos anos pela Patrulha da Noite, um grupo de homens formado em sua maioria por ex-criminosos a quem é dada uma nova chance para continuar vivendo, a construção hoje está enfraquecida, assim como seus patrulheiros, que diminuíram consideravelmente em número e em eficiência . O mundo parece não mais precisar deles.
É por meio dos Stark que acompanhamos a maior parte da história. Lord Eddard é um homem preocupado com seu povo e que preza, sobretudo, a honra. Casou-se com Cataleyn, da família Tully, com quem teve cinco filhos: Robb, Sansa, Arya, Bran e Rickon. Ned, como também é conhecido, ainda é pai do bastardo Jon Snow. E diante da proposta do rei, vê-se obrigado a deixar o castelo de Winterfell e seguir para a capital do reino, Porto Real. A partir daí torna-se Mão do Rei e assume as responsabilidades de Robert Baratheon, que vive entregue à bebida e às mulheres, sem saber da existência da rede de intrigas ao seu redor.
Paralelamente a esses acontecimentos, para além do mar estreio, na Cidade Livre de Pentos, encontramos Viserys e Daenerys, últimos descendentes de Aeryn II, rei morto por Jaime Lannister e substituído por Robert Baratheon. Viserys, em sua loucura pela reconquista do trono de ferro, vende sua irmã para Kahl Drogo, chefe dos dothraki, com o intuito de obter em troca um exército forte o bastante para invadir Westeros e retomar o trono de ferro para si.
No princípio, e talvez até a metade da história, o livro não é fácil de acompanhar. Praticamente inexistem cenas realmente grandiosas de ação, o que pode frustrar os leitores que procuram o livro ávidos por muita aventura e pouco diálogo. Os longos diálogos, aliás, que na maioria das vezes ocupam a maior parte dos capítulos, são os verdadeiros responsáveis por contar a história do começo ao fim, representando o maior diferencial do livro. Todos são recheados de mensagens escondidas nas estrelinhas e frases de efeito. É impossível não se deliciar com as tiradas de Tyrion, Varys ou mesmo Mindinho, sempre com as línguas bem afiadas.
Cada capítulo leva no título o nome de um personagem, dentre Eddard Stark, Bran, Catelyn, Tyrion, Jon, Sansa, Arya e Daenerys, e mostra o seu ponto de vista dos acontecimentos, com as peculiaridades de cada um muito bem traçadas pelo autor.
A escrita é fácil, enxuta, mas a forma como as informações são lançadas não é das mais didáticas, por isso apaixonar-se por Guerra dos Tronos requer também paciência e perseverança. São muitos acontecimentos, tanto do presente quanto de um passado remoto, às vezes nem tão importantes para o enredo principal, ainda que relevantes para acrescentar realismo a Westeros. Além disso, há diversos personagens, com nomes muito complicados, que facilmente serão esquecidos ou confundidos até que se acostume com eles. Chega um momento em que, mesmo tendo lido várias páginas, você sentirá que não sabe de nada. Apesar disso, o fato de Martin não lançar tudo de uma vez para o leitor pode ser considerada uma estratégia muito inteligente, porque gera mais mistério e não deixa a história mais lenta.
Os personagens são outro grande destaque. Todos são muito bem construídos, com características muito peculiares. Nenhum deles é perfeito. Ao contrário, possuem falhas, medos, limitações e são capazes de qualquer coisa, principalmente de surpreender e lutar pelo melhor para si. A maioria começa estereotipado, mas à medida que vão crescendo, tornando-se singulares e isso acaba passando despercebido diante da forma como tudo é bem trabalhado.
Eddard Stark representa o homem bom por natureza. É o único que se mantem incorruptível, mesmo diante de todas as pressões e tentações que é obrigado a suportar ao assumir sua posição de Mão do Rei. Mostra-se sempre cansado e arrependido da escolha que fez, mas seu senso de responsabilidade e o compromisso assumido com seu amigo Robert, e mesmo com o povo, parecem mais fortes do que as pressões feitas por Cersei Lannister, Varys, Mindinho e outros membros da corte. Não é inebriado pelo poder. Este, ao inverso, parece lhe causar aversão. Sua tarefa se torna ainda mais difícil quando tem que cuidar dos seus próprios deveres de pai sozinho, pois precisa ensinar a suas filhas tão diferentes a lidarem uma com a outra, mesmo que nem sempre se saia tão bem.
O bastardo Jon Snow vive atormentado com seu passado, principalmente por não saber quem é sua mãe. Apesar de ser tratado igualmente por seu pai e pelos irmãos, é odiado pela madrasta Catelyn e logo compreende que nunca haverá lugar para ele em Winterfell , por isso decide ir para a Patrulha da Noite. E lá, diante de sua ingenuidade e ainda preso aos seus valores essencialmente aristocráticos, acaba por cair nas armadilhas de outros patrulheiros, dos quais é muito diferente. Nesse momento precisa se desligar definitivamente de sua família e de seu passado, além de a aceitar as críticas e imposições de seus companheiros e lutar consigo mesmo.
Não há como não sentir pena de Bran e odiar de imediato os irmãos gêmeos Lannister por jogarem-no da janela. Assim como Jon, ele precisa aprender a lidar com sua nova condição, com sua deficiência, com o povo de Winterfell, com o conflito existente em sua mente causados pelo confronto das histórias que a Velha Ama lhe conta e os ensinamentos que Meistre Luwin lhe passa. Além disso, tem que assumir o papel de pai do próprio irmão mais novo, Rickon, e tentar controlar seu espírito intempestivo.
Já Catelyn é mãe, protetora por excelência. Faz tudo no intuito de tentar ter a família novamente ao seu redor. Suas preocupações são sempre voltadas para os filhos, principalmente com Bran, com quem fica a maior parte do tempo, só deixando-o quando parte em uma busca desenfreada para tentar descobrir quem o deixou aleijado a partir das pistas deixadas por sua irmã Lisa Arryn, que parece ter enlouquecido de vez.
Sansa é vaidosa, sonhadora e fútil. É a dama perfeita. O produto do que todos querem para as mulheres bem nascidas de Westeros. Adora as histórias de cavalarias, sonha em casar com um príncipe e preocupa-se somente com seus vestidos, sua beleza e as boas-maneiras. Além de odiar intensamente sua irmão Arya, que é seu exato oposto. Esta mais parece um menino. Abomina tudo aquilo que Sansa enaltece. Gosta de espadas, de guerra, de luta e não sonha em ser uma dama. Prefere as aulas de esgrima às lições da Corte passadas por Septã Mordane. Arya é violenta, vingativa e faz apenas aquilo que deseja. É fácil odiar Sansa e difícil não amar Arya, porque Sansa é superficial, enquanto Arya não cansa de nos surpreender e fazer tudo o que mais desejamos. Mas uma das maiores reviravoltas da história separa as duas definitivamente e transforma suas vidas de maneira drástica e irreversível. Nesse momento é que damos uma chance a Sansa.
Daenarys é a personagem que mais evolui ao longo do livro. De uma marionete nas mãos do irmão louco Viserys , ela se transforma em uma mulher forte, obrigada a abandonar a inocência infantil diante de um casamento forçado com o chefe dos dothraki e assumir o compromisso de rainha desse povo tão culturalmente diferente para ela. Com Khal Drogo, ela aprende sobre o mundo, descobre o amor e precisa lutar para mantê-lo vivo. As cenas do livro que protagoniza são algumas das mais épicas e emocionantes. Absolutamente memoráveis.
Tyrion Lannister é a personificação do anti-herói. Sua ironia foi a melhor forma que encontrou de lidar com os constantes decepções por que já passou. Caçula dos Lannister, é culpado pelo pai e os irmãos mais velhos pela morte de sua mãe, quando lhe deu a luz. Ninguém parece amá-lo ou ao menos simpatizar com ele. Até mesmo o leitor se sente inseguro com suas atitudes durante boa parte do tempo, até compreender que ele é totalmente diferente do resto da família. Embora pareça mau, é provavelmente um dos melhores personagens. Tyrion é apenas incompreendido, mas também é corajoso e, no fundo, só busca alguém que realmente o ame, que o aceite como é, embora nem ele mesmo goste de si, por isso parece sempre buscar pessoas que são consideradas tão baixas quanto ele, selvagens, prostitutas, ladrões. É impossível não torcer por ele, porque é o único personagem corajoso o bastante para enfrentar todos aqueles que mais odiamos, principalmente sua irmã Cersei.
Leva um tempo até que o leitor descubra que se está lendo algo realmente novo. Há críticas aos valores, à moral e à religião por todo lugar, mas tudo feito com muita sutileza. Não se trata de uma guerra entre o bem e o mal. É apenas a luta pelo poder e pelo que cada um acha melhor para si. É fantasia, mas não é para crianças. Há sangue, há sexo, há violência, há estupros e palavrões. Tudo nu e cru. Impera o realismo, o sofrimento, o interesse. Não há histórias de amor, mas somente de dor, recheadas de infidelidade e traição. É o passo a frente que precisam dar aqueles que cresceram com Harry Potter. É o terreno não explorado por J. R. R. Tolkien em o Senhor dos Anéis, porque os personagens, inclusive os mais secundários, são de carne e osso. Não há como não se identificar com algum deles, porque parecem existir no mundo real.
A magia abandonou Westeros e os dragões ficaram no passado. Essas são apenas histórias que as amas contam para as crianças dormirem, dizem os mais sábios. Mas isso é o que os personagens contam. E nada nem ninguém é o que parece quando se joga o jogo dos tronos.