Ana Ruppenthal 15/05/2020
Causas justas, palavras brincalhonas e, sobretudo, homens bonitos
Apesar de ser autobiográfico, tem um teor literário excepcional.
É dificílimo encontrar uma personagem, em um romance fictício convencional, que, sendo mulher, tenha o domínio de suas relações e autonomia e sinceridade sobre suas emoções, ainda mais conciliando tudo isso com uma carreira política, trabalho e família.
Mas Gioconda Belli, narrando sua própria vida, já fazia isso muito antes de pensar em escrever.
Claro que a obra apresenta várias minúcias sobre a trajetória política da autora e da Nicarágua, narrando a luta contra a ditadura financiada pelos Estados Unidos, o longo histórico do somozismo no poder e mesmo como as classes burguesas lidavam com isso.
E, como feminista de bandeirinha, Gioconda narra, também, as múltiplas violências que uma mulher sofre nesse meio: as mulheres que, depois de lutarem tão arduamente quanto os homens nas trincheiras, são mandadas para a cozinha sem tempo de descansar logo depois que a batalha acaba e o seu lado vence, sem direito as condecorações que os homens ganham (isso é uma alegoria minha, e não spoiler); como líderes políticos acham que, só por sua posição, qualquer mulher vai querer ir para cama com eles, e como eles são os mais assediadores muitas vezes; como a mulher fica com seu direito de voz restrito, mesmo cercada de homens 'feministos'; a violência médica e obstétrica que a mulher sofre, com médicos que as dissecam como animais sem dar-lhes direito de decidir sobre seu corpo; a pressão que a mulher sofre para manter um casamento perfeito, mesmo dentro de um regime de "esquerda" etc etc.
Mas o que me fascinou mesmo foi a vida privada que a autora narrou sem nenhum escrúpulo. Desde o primeiro marido frouxo que ela nem chega a citar o nome a todas as paixões luxuriosas nas quais ela mergulha de cabeça. Eu juro que revirei a internet mas não encontrei fotos do Marcos/Eduardo, Charles Castaldi quando jovem e do Modesto, somente para ter uma ideia de como eram esses homens tão bonitos, atraentes e fodões por quem Gioconda se apaixonou tão perdidamente, porque eu acho que acabei me apaixonando um pouco por eles também.
Apesar da poesia de Gioconda deixar uma imagem de mulher "liberal", eu acho que era apenas uma mulher dona de si que engatava um relacionamento atrás do outro (mesmo que fossem relacionamentos abusivos...), tendo ocasionalmente relacionamentos extraconjugais.
Muitas dessas paixonites ela colocou em pedestais morais, relevando atitudes escrotas, mas afinal, quem nunca teve dessas fraquezas? Ao menso ela foi sincera e justa na descrição de sua vida, sem romancear.
Espero que os romances convencionais de Gioconda Belli sejam tão bons quanto a sua autobiografia no quesito emancipação emocional das personagens, tanto mulheres quanto homens. Acho que foi a melhor autobiografia que já li, totalmente indico.