Paulo Silas 13/07/2011
Impressões sobre o livro ‘Cangaceiros‘, de José Lins do Rêgo
RÊGO, José Lins do. Cangaceiros. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: J. Olimpio, 1973. 280 p.
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E os cabras se esgueiravam como lagartixas. Cuidadosos, arguciosos, prontos para o bote; atentos a qualquer ruído!
E deixavam entrar, não somente pelas narinas, mas também alma adentro, a quentura daquelas terras combustas do Sertão nordestino. Aquelas terras que, por não ter suficiente água e compaixão para lavar a desgraça da seca, eram lavadas pelo sangue que se derramava tal como o sangue das criações. Terras de almas penadas que andam escanchadas pelas tortuosas cercas das estradas vermelhas. Terras dum profundo atavismo que direcionava os filhos a viverem a mesma desgraça dos pais, dos avós, dos bisavós, dos trisavós e dos mais distantes parentes. Terras controladas, ao mesmo tempo, pelo medo da morte e pela avassaladora loucura de jogar-se perante àquela mesma morte e, com os dentes escangalhados duma ferocidade animalesca, dominá-la com as mãos e mandá-la ir viver para além dos limites do mar. Sim! Aquela terra! Aquele Sertão que, sob as forças de fortes rezas e de miraculosas mãos de padres santos, quase que se erguia como um mundo à parte. Um mundo com suas leis e seus preceitos. O mundo da cruz à beira da estrada. O mundo dos santíssimos palavreados. O mundo das cantorias feitas no copiá, nas varadas das casas. O mundo pintado pelas tintas vermelhas da secura. O mundo onde o domínio do cangaço se estendia e punha constante medo.
E os cangaceiros iam por debaixo dos abusados espinhos ressequidos. Por entre as veredas que conheciam de cor, porque o Sertão era desde sempre o reino no qual moravam e sobre o qual agora mandavam e desmandavam segundo os seus mais irrequietos caprichos. Lá iam eles. Se esgueirando eles iam. Como animais. Como se fossem os próprios animais que povoavam aquelas paragens místicas.
E a boca da noite se abria para comer o mundo.
Cangaceiros, pág. 38
Mas não só o Sol aparecia com suas mãos de unhas crescidas a rasgar a pele dos desafortunados habitantes do Sertão. Também a Noite aparecia.
E, quando isso se dava, ela vinha já com a boca aberta a mostrar os seus milenares dentes famintos. E, de sua boca imundamente obscena, saíam rememorações dos mais horripilantes assassinatos. Ecos de derradeiros brados. Pedidos angustiados por compaixão. Pedidos desesperados de vingança. E gritos de completo desvario: tenho meu filho assassinado e está com a minha mulher lá em cima enterrados. A mãe morreu de desgosto, morreu mesmo.