Anatomia da Crítica

Anatomia da Crítica Northrop Frye




Resenhas - Anatomia da Crítica


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Lucas 10/07/2020

Alguns excertos
Alguns excertos:

“Um público que tenta prescindir da crítica, e afirma que sabe o que quer e do que gosta, brutaliza as artes e perde sua memória cultural. A arte pela arte é um afastamento da crítica que redunda em um empobrecimento da própria vida civilizada.” (pág. 113)

“A leitura da literatura deveria, como a oração nos evangelhos (Mateus 6,5–6), retirar-se do mundo falante da crítica para entrar na presença privada e secreta da literatura. De outro modo, a leitura não será uma experiência literária genuína, mas um mero reflexo de convenções críticas, lembranças e preconceitos. A presença da experiência incomunicável no centro da crítica sempre manterá a crítica como uma forma de arte, contanto que o crítico reconheça que a crítica sai dessa experiência, mas não pode ser construída sobre ela.” (pág. 141)

“As obras literárias também se deslocam no tempo como a música e se apresentam em imagens como a pintura. A palavra ‘narrativa’, ou mythos, transmite a sensação de movimento captado pelo ouvido, e a palavra ‘sentido’, ou dianoia, transmite, ou pelo menos preserva, a sensação de simultaneidade captada pelo olhar. Ouvimos um poema conforme ele se movimenta do início ao fim, mas, tão logo o seu todo está em nossas mentes de uma vez só, ‘vemos’ o que ele significa. Mais exatamente, essa resposta não é simplesmente para o todo dele, mas para um todo nele: temos uma visão de sentido, ou dianoia, quando uma apreensão simultânea é possível.” (pág. 195)

“A arte parece produzir um tipo de desprendimento, que, muito embora frequentemente chamado de prazer, como é, por exemplo, por Wordsworth, é algo mais inclusivo do que o prazer. ‘Exuberância é beleza’, disse Blake. Isso me parece uma solução praticamente definitiva, não somente da questão menor acerca do que é beleza, mas do problema muito mais importante acerca do que as concepções de catarse e êxtase realmente significam.
Tal exuberância é, certamente, tanto intelectual quanto emocional: o próprio Blake estava disposto a definir a poesia como ‘Alegoria direcionada às faculdades intelectuais’. Vivemos em um mundo de uma coerção externa tripartite: da coerção sobre a ação, ou lei; da coerção sobre o pensamento, ou fato; da coerção sobre o sentimento, que é a característica de todo prazer, seja produzido pelo Paraíso, seja por um sorvete. Mas, no mundo da imaginação, um quarto poder, que abarca moralidade, beleza e verdade, mas que nunca se encontra subordinada a elas, surge livre de todas essas coerções. A obra de imaginação nos proporciona uma visão, não da grandeza pessoal do poeta, mas de algo impessoal e muito maior: a visão de um ato decisivo de liberdade espiritual, a visão da recriação do homem.” (pág. 214–215)

“O crítico arquetípico estuda o poema como parte da poesia e a poesia como parte da imitação humana total da natureza que chamamos de civilização. A civilização não é simplesmente uma imitação da natureza, mas o processo de criar uma forma humana total a partir da natureza, sendo impelida pela força que acabamos de chamar de desejo. O desejo por comida e abrigo não se satisfaz com raízes e cavernas: ele produz as formas de natureza humana que chamamos de agricultura e arquitetura. O desejo não é então uma resposta simples à necessidade, pois um animal pode precisar de comida sem plantar uma horta para obtê-la, nem é uma resposta simples à necessidade, ou ao desejo por algo em particular. Não é nem limitado, nem satisfeito por objetos, mas é a energia que leva a sociedade humana a desenvolver sua própria forma. O desejo, nesse sentido, é o aspecto social do que conhecemos no nível literal como emoção, um impulso em direção à expressão que teria permanecido amorfo se o poema não a tivesse liberado ao fornecer a forma para a sua expressão. A forma do desejo, similarmente, é liberada e tornada visível pela civilização. A causa eficiente da civilização é o trabalho, e a poesia, em seu aspecto social, tem a função de expressar, como uma hipótese verbal, uma visão do objetivo de trabalho e das formas de desejo.
Há, entretanto, uma dialética moral no desejo. A concepção de um jardim dá origem à concepção de ‘erva daninha’, e construir um curral torna o lobo um inimigo maior. A poesia, em seu aspecto social ou arquetípico, portanto, não apenas procura ilustrar a satisfação do desejo, mas definir os obstáculos a ele. O ritual não é somente um ato recorrente, mas um ato expressivo de uma dialética de desejo e repulsa: desejo por fertilidade ou vitória, repulsa à estiagem ou aos inimigos. Temos rituais de integração social e temos rituais de expulsão, execução e punição. No sonho, há uma dialética paralela, como há tanto o sonho de realização de um desejo como o sonho de ansiedade ou pesadelo de repulsa. A crítica arquetípica, portanto, repousa em dois ritmos ou padrões organizadores, um cíclico e outro dialético.
A união entre o ritual e o sonho em uma forma de comunicação verbal é o mito.” (pág. 229–230)

“Na fase anagógica, a literatura imita o sonho total do homem e assim imita o pensamento de uma mente humana que está na circunferência e não no centro de sua realidade. (…) Quando passamos para a anagogia, a natureza se torna não o recipiente, mas a coisa contida, e os símbolos arquetípicos universais — a cidade, o jardim, a busca, o casamento — não são mais as formas desejáveis que o homem constrói dentro da natureza, mas são elas mesmas as formas da natureza. A natureza está agora dentro da mente de um homem infinito que constrói suas cidades a partir da Via Láctea. Isso não é realidade, mas é o limite concebível ou imaginativo do desejo, que é infinito, eterno e, portanto, apocalíptico. Por apocalipse, quero dizer fundamentalmente a concepção imaginativa do todo da natureza como o conteúdo de um corpo infinito e eterno, que, se não é humano, está mais próximo de ser humano do que de ser inanimado. ‘O desejo do homem sendo Infinito’, disse Blake, ‘a posse é Infinita & ele mesmo Infinito’.” (pág. 244–245)

“O número de razões válidas para elogiar a Ilíada preencheria um livro maior do que este, mas a razão relevante para nós, aqui, é o fato de que seu tema é a menis, uma canção de ira. É dificilmente possível superestimar a importância para a literatura ocidental da demonstração da Ilíada de que a queda de um inimigo, não menos do que a de um amigo ou líder, é trágica e não cômica. Com a Ilíada, de uma vez por todas, um elemento objetivo e desinteressado entra na visão que o poeta tem da vida humana. Sem esses elementos, a poesia é simplesmente instrumental para vários objetivos sociais, para a propaganda, para a diversão, para a devoção, para a instrução: com esse elemento, a poesia adquire a autoridade que, desde a Ilíada, ela nunca perdeu, uma autoridade baseada, como a autoridade da ciência, na visão da natureza como uma ordem impessoal.” (pág. 484)

“(…) quanto mais nos afastamos da literatura, ou do uso da linguagem para expressar o estado completamente integrado de consciência emocional que chamamos de imaginação, mais próximos chegamos do uso da linguagem como a expressão do reflexo. Quer sigamos na direção emocional, quer na intelectual, chegamos basicamente no mesmo ponto, um ponto antípoda à literatura, no qual a linguagem é um comentário em tempo real sobre o inconsciente, como os ruídos de um esquilo.” (pág. 498)

“É um lugar comum da crítica que a arte não evolui ou melhora: ela produz o clássico, ou modelo. Ainda se podem comprar livros narrando o ‘desenvolvimento’ da pintura desde a Idade da Pedra até Picasso, mas eles não mostram nenhum desenvolvimento, somente uma série de mutações na habilidade, estando Picasso consideravelmente no mesmo nível que seus ancestrais magdalenianos. De vez em quando experimentamos nas artes uma sensação de revelação definitiva. Isso, podemos senti-lo depois de um moteto de Palestrina ou um divertimento de Mozart, é a voz da própria música: isso é o tipo de coisa pela qual a música foi inventada para dizer. Aqui está uma simplicidade que nos faz perceber que o simples é o oposto do lugar-comum, um sentimento de que os limites da expressão possível na arte foi alcançada por todo o sempre. Esse sentimento pertence à experiência direta, não à crítica, mas ele sugere o princípio crítico de que as mais profundas experiências possíveis de serem obtidas nas artes estão disponíveis na arte já produzida.
O que melhora na arte é sua compreensão e o refinamento da sociedade que resulta disso. É o consumidor que se torna humanizado e educado liberalmente. Não há razão pela qual um grande poeta deveria ser um homem sábio e bom, ou mesmo um ser humano tolerável, mas há todas as razões pelas quais seu leitor deveria ser aperfeiçoado em sua humanidade como resultado de lê-lo. Por isso, enquanto a produção de cultura pode ser, como o ritual, uma imitação semi-involuntária de ritmos ou processos orgânicos, a resposta à cultura é, como o mito, um ato revolucionário de consciência. O desenvolvimento contemporâneo da habilidade técnica de estudar as artes, representado pelas reproduções da pintura, a gravação da música e as bibliotecas modernas, faz parte de uma revolução cultural que faz as humanidades como que prenhes de novos desenvolvimentos, assim como as ciências. Pois a revolução não é simplesmente na tecnologia, mas na força produtiva espiritual. A tradição humanística em si surgiu, em sua forma moderna, com a invenção da imprensa, cujo efeito imediato não era tanto o de estimular uma nova cultura, como o de codificar a herança do passado.” (pág. 508–509)

“Já mencionamos várias vezes uma analogia entre a literatura e a matemática. A matemática parece ter começado com a contagem e a mensuração dos objetos, como um comentário numérico sobre o mundo exterior. Mas o matemático não pensa em sua disciplina dessa forma: para ele, é uma linguagem autônoma, e há um ponto em que ela se torna, em certa medida, independente desse campo comum da existência a que chamamos de mundo objetivo, ou natureza, ou existência, ou realidade, de acordo com nosso humor. Muitos de seus termos, tais como os números irracionais, não possuem conexão direta com o campo comum da experiência, mas dependem, para seu sentido, somente das inter-relações da própria disciplina. (…)
Também pensamos na literatura, inicialmente, como um comentário sobre uma ‘vida’ ou ‘realidade’ externa. Mas, assim como na matemática, temos que ir de três maçãs para três, e de um campo quadrado para um quadrado; assim, ao ler um romance, temos que ir da literatura como reflexo da vida para a literatura como uma linguagem autônoma. A literatura também trabalha a partir de possibilidades hipotéticas e, embora a literatura, como a matemática, seja constantemente útil — uma palavra que significa ter uma relação continuada com o campo comum da experiência —, a literatura pura, assim como a matemática pura, contém seu próprio significado.
(…) Ambas, além disso, levam dissenso à antítese entre ser e não ser que é tão importante para o pensamento discursivo. O símbolo nem é nem deixa de ser a realidade que ele manifesta. A criança, ao se iniciar na geometria, é apresentada a um ponto e ouve, inicialmente, que aquilo é um ponto, e, a seguir, que aquilo não é um ponto. Ela não é capaz de avançar a menos que aceite ambas as afirmações de uma vez só. É um absurdo que aquilo que não é um número possa também ser um número, mas o resultado da aceitação do absurdo foi a descoberta do zero. O mesmo tipo de hipótese existe na literatura, onde Hamlet e Falstaff tanto existem como não existem (…).
A possibilidade que me parece sugerida pela presente discussão é a seguinte. As estruturas verbais discursivas possuem dois aspectos, um descritivo, outro construtivo, um conteúdo e uma forma. O que é descritivo é sigmático: isto é, estabelece uma réplica verbal de fenômenos externos, e seu simbolismo verbal deve ser compreendido como um conjunto de signos representativos. Porém, qualquer coisa que seja construtiva em qualquer estrutura verbal parece-me ser invariavelmente algum tipo de metáfora ou identificação hipotética, seja estabelecida entre sentidos diferentes da mesma palavra ou pelo uso de um diagrama. As metáforas pressupostas, por sua vez, tornam-se as unidades do mito ou o princípio construtivo do argumento. Enquanto lemos, estamos conscientes de uma sequência de identificações metafóricas; quando terminamos, temos consciência de um padrão estrutural organizador ou mito conceituado.
(…) Essa visão da relação do mito com o argumento iria nos levar muito perto de Platão, para quem os atos finais de apreensão eram matemáticos, ou míticos.
A literatura, como a matemática, é uma linguagem, e uma linguagem em si não representa nenhuma verdade, muito embora possa proporcionar os meios para expressar inúmeras delas. Contudo, os poetas e os críticos igualmente sempre acreditaram em algum tipo de verdade imaginária, e talvez a justificativa para a crença esteja no fato de a linguagem conter aquilo que ela pode expressar. Os universos matemático e verbal são, sem sombra de dúvida, modos diferentes de conceber o mesmo universo. O mundo objetivo permite um meio provisional de unificar a experiência e é natural inferir uma unidade mais elevada, uma espécie de beatificação do sentido comum. Mas não é fácil encontrar alguma linguagem capaz de expressar a unidade desse universo intelectual mais elevado. A metafísica, a teologia, a história, o direito, já foram todos usados, mas são todos construtos verbais, e quanto mais longe os levarmos, mais claramente seus contornos metafórico e mítico vão ficar nítidos. Sempre que construímos um sistema de pensamento para unir a terra e o céu, a história da Torre de Babel retorna: descobrimos que, depois da queda, não somos capazes de fazê-lo e que o que temos, nesse meio tempo, é uma pluralidade de línguas.
Se li o último capítulo de Finnegans Wake corretamente, o que ocorre ali é que o sonhador, depois de passar a noite em comunhão com um vasto corpo de identificações metafóricas, desperta e parte para seus afazeres, esquecendo-se de seu sonho, como Nabucodonosor, fracassando em usar, ou mesmo em perceber que pode usar, as ‘chaves para a terra dos sonhos’. O que ele não consegue fazer é, portanto, deixado para o leitor fazer, o ‘leitor ideal, sofrendo de uma insônia ideal’, como Joyce o chama, em outras palavras, o crítico. Uma atividade como essas, de reforjar os elos quebrados entre a criação e o conhecimento, a arte e a ciência, o mito e o conceito, é o que diviso como crítica.” (pág. 515-520)

site: https://medium.com/@lucaspetrybender/excertos-de-anatomia-da-cr%C3%ADtica-1957-de-northrop-frye-1f3374e335c1
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