Laura Ferreira 02/01/2019A distopia mais brasileira que já li“Zero” é um romance distópico publicado por Ignácio de Loyola Brandão, inicialmente na Itália, em 1974 (dada a recusa das editoras brasileiras) e, no ano seguinte aqui no Brasil. Entretanto, em 1976 o livro volta a ser alvo de desconforto, culminando em sua proibição pelo Ministério da Justiça. Pensando no contexto sócio-político do país na época, não é surpreendente a censura: Zero narra a história de José, inicialmente um homem comum de 28 anos, e sua interação com essa sociedade desigual e autoritária na qual está inserido; e não somos poupados de cenas perturbadoras de injustiças e torturas (inclusive, cuidado caso for sensível a este tipo de conteúdo), o que claramente incomodou o governo ditatorial então vigente.
O romance é organizado de forma pouco convencional, configurando, portanto, uma escrita experimental: acompanhamos uma narrativa linear, a vida de José (seu romance com Rosa, sua busca por emprego, seu envolvimento com guerrilheiros etc.), mas que é constantemente “interrompida” por desenhos, manchetes, listas, comunicados, memórias, notas de rodapé e até mesmo histórias de outros personagens (como a saga de Carlos Lopes e seu filho doente), e essas interrupções podem ou não ter relação direta com o que tem sido narrado até então.
Justamente por essa estrutura fragmentada e frenética, críticas pungentes ganham um espaço todo delas, possibilitadas também por um narrador sempre direto e sarcástico:
"SAGRADAS DETERMINAÇÕES
'A partir de hoje, todo veículo deverá levar uma bandeira e uma dístico de plástico com dizeres de elogios ao governo ou ao país. Cada carro sem slogan será apreendido e o dono detido por seis meses.' (2)
[...]
(2) Um coronel fabricava as bandeiras e dísticos: ficou milionário." (p. 267)
Desses pequenos capítulos, chamaram minha atenção os que consistem em pequenos comunicados ou narrativas sobre cientistas e intelectuais que saíram do país devido à perseguição política; no trecho abaixo fica perceptível o quanto uma sociedade perde em expulsar pessoas do tipo, que tanto acrescentam a nossa ciência e cultura e, em contrapartida, como outros países parecem se dar conta da importância deles e de estimulá-los a produzir, coisa que sua terra natal os impediram de fazer:
"ADEUS, ADEUS
O cientista Marcondes Reis conseguiu sair do país, ajudado por amigos. Vai para a Universidade Patrice Lumumba, onde lhe prometeram as condições necessárias para continuar suas pesquisas. Aqui, o professor Marcondes Reis começou perdendo sua cátedra, teve sua casa invadida duas vezes pela polícia, confiscaram todos os livros de sua biblioteca, ameaçaram seus filhos.
O presidente deu uma declaração: ‘Quando a ciência subverte o homem e corrompe, é melhor ter um país sem ciência, atrasado’." (p. 41)
Me agrada muito em Zero como o autor soube dosar o universalismo das críticas (até porque sociedade nenhuma esteve/está imune a governos autoritários) e o tom quase regionalista da ambientação. Vejo Zero como uma singular distopia latino-americana.
A obra explicita também seu caráter circular, seja na ambientação, “Num país da América Latíndia, amanhã” (p. 9), e no protagonista, que está o tempo todo a nos lembrar o quanto é um homem ordinário, que pode ser encontrado em qualquer lugar, contando inclusive com uma cena em que ele tenta se entregar a polícia mas é desconsiderado como suspeito, dada sua vulgar aparência (ao contrário de Gê, líder dos guerrilheiros, que conta até com sósias), provando, novamente, que ninguém está imune e tudo pode se repetir com outros Josés.
Espero que a narrativa incomum do romance não deixe ninguém intimidado, porque se trata de um livro que, se lido atentamente, tem tudo para ser fonte abundante de reflexão e discussão, agora mais pertinentes que nunca.