Renata CCS 06/11/2014O alívio do amargor
"Quem já passou
Por esta vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
Pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou
Pra quem sofreu(...)"
- Como Dizia o Poeta (Vinícius de Moraes)
Em VERMELHO AMARGO, livro de cunho autobiográfico, Bartolomeu Campos de Queirós revisita passagens da própria infância, suas difíceis memórias afetivas, para criar uma história impregnada de poesia.
O livro fala da infância, de perdas, de partidas, de vazio, da verdadeira dor da existência. O autor consegue falar de sentimentos devastadores com uma suavidade e encantamento que imprime ainda mais significado a cada palavra escolhida para compor essa belíssima obra.
Ele relembra seu tempo de criança marcado pela morte da mãe, que é representada pela extrema graciosidade e paixão em que colocava em tudo o que fazia, substituída por uma madrasta indiferente, de escasso afeto e de atitudes mecanizadas.
A morte é apresentada logo nas primeiras páginas, quando conhecemos a mãe que, de certa forma, morre toda vez que é lembrada no tomate maduro, vermelho carne, que assombra o menino. A mãe, o tomate e o primeiro sentimento de amor se complementam em uma metáfora que sempre se renova cada vez que é invocada.
Como símbolo da agonia sofrida, o tomate é evocado e exposto de maneiras diversas, mas sempre possui o mesmo gosto amargo, sabor que predominou em quase toda a sua infância. Através das mãos delicadas da mãe, o tomate era cortado em cruz e se "transfigurava em pequenas embarcações ancoradas na baía da travessa." Já a gélida madrasta cortava o tomate "em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos."
A vida passou a ser dividida entre a imagem positiva da mãe e a figura negativa da madrasta. E é nesse vai e vem do tomate, ora amargo, ora doce, que o protagonista fala de si mesmo, de suas relações com a família e de sua visão do mundo.
Com a saudade cravada na alma, o menino observa a família lidar com a perda: o pai que bebia demais, o irmão que comia vidro, a irmã que tricotava sem parar, e outras adversidades que o levam para uma época que não tem volta, mas com uma dor e sentimento de perda que sempre o acompanharam.
Bartolomeu Campos de Queirós conseguiu conquistar de imediato a empatia do leitor com sua prosa poética refinada, sensível e carregada de simbolismo. Mergulhamos em um universo que, embora esteja longe de mostrar uma infância feliz, está carregado de paixão e beleza.
Não há exatamente uma história, uma linha reta de narrativa, é mais como sucessão de lembranças. A história não se divide em capítulos, mas em parágrafos, em gomos que vão se unindo no todo, técnica utilizada com maestria pelo escritor. O que o Bartolomeu fez foi produzir um diário de memórias, uma fábula delicada, um livro de poesias, com uma linguagem tão sublime e soluçante que, além de tradutora de estados interiores, atravessa a verdadeira dor da existência.
É um relato repleto de poesia que nos enche de sentimentos contraditórios. Um livro incrível, fantástico se você souber apreciar. Muito simples em sua ideia central, a história do amor de um filho por sua mãe, talvez um dos amores mais puros e universais.
O livro é um tesouro, um achado, um lindo presente. Um dos mais lindos que já ganhei. É uma experiência que recomendo a todos, pois não é possível vivenciá-lo através de opiniões diversas, por mais honestas que possam ser.
Leiam. Simplesmente leiam.
"Mesmo em maio com manhãs secas e frias sou tentado a mentir-me. E minto-me com demasiada convicção e sabedoria, sem duvidar das mentiras que invento para mim. Desconheço o ruído que interrompeu meu sono naquela noite. Amparado pela janela, debruçado no meio do escuro, contemplei a rua e sofri imprecisa saudade do mundo, confirmada pela crueldade do tempo. A Vida me pareceu inteiramente concluída. Inventei-me mais inverdades para vencer o dia amanhecendo sob névoa. Preencher um dia é demasiadamente penoso, se não me ocupo de mentiras." (p.7)
"A esposa de meu pai prezava o tomate sem degustar o seu sabor. Impossível conter em fatia frágil além da cor, semente, pele também o aroma. Quando invertida, a palavra aroma é amora. Aroma é uma amora se espiando no espelho. Vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra que me desvela, me esconde. Toda palavra é espelho onde o refletido me interroga." (p.12)
"Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles." (p.16)
"Ao amar, desvendei a serventia do corpo para além de guardar a alma importal.(...) No amor, meu corpo delatou a presença da alma, que veio morar na superfície da minha pele." (p.27)
"(...) passarinho é uma vírgula pontuando o céu. Eu ensaiava ler as perguntas que preenchiam o azul vazio e os pássaros virgulavam. Descobri ser uma língua estrangeira a voz dos pássaros, e embaraçava-me. Então, subvertia respostas para tapear meu desconsolo. Não ter resposta é confirmar-se ausente. Viver exige perguntas e eu, mudo, não sabia responder." (p.30)
"Não dar palavras ao desejo é ocultá-lo na solidão." (p.48)