Layla 03/05/2016Não adianta ser vaca se não tiver quatro estômagos, tá?O livro Quarto, de Emma Donoghue, é como o Quarto em que Jack vivia. Seus componentes eram pequenas coisas além do próprio Jack e da Mãe - os móveis, a Planta, a Cobra de Ovos. O que faz esse livro, além dos personagens, são as pequenas sacadas que Jack dá, com tamanha inocência e pureza e, mesmo assim, tão ricas de significado.
"- Que coincidência! Está gostando daqui?
- Estou gostando do bacon.
Ele riu, eu não sabia que tinha feito uma piada de novo.
- Também gosto de bacon. Até demais.
Como gostar pode ser demais?"
Jack é muito inteligente. Sabe falar e ler todas as palavras do mundo. A Mãe é sempre linda - e, sob minha ótica, um exemplo de força a ser temida. Porque o perigo não reside nos planos que falham, e sim na esperança que sempre cria outros para substitui-los. O perigo reside nos óculos que vestimos e no grau que aumentamos ou diminuímos, aparece no momento em que vemos no que poderia ser o grande inimigo um grande salvador. E fora isso o que a Mãe fez ao ver Jack como um milagre.
Eles ficaram presos por anos - sete anos a Mãe e Jack desde que nascera há cinco anos - em um lugar pequeno e protegido, onde nenhum barulho chega ao exterior e não há saídas. Seu captor, o Velho Nick, aparece pela noite e deixa "presentes" uma vez por semana, que nada são além de coisas minimamente necessárias para que a vida seja possível.
"Contei nossa respiração de novo. Tentei me morder no ombro, e doeu. Em vez de pensar nos macacos, pensei em todas as crianças do mundo, em como elas não são da televisão, são reais, elas comem e dormem e fazem xixi e cocô feito eu. Se eu tivesse uma coisa afiada e epetasse elas, elas sangravam, se eu fizesse cócegas, elas riam. Eu queria ver as crianças, mas fico tonto por elas serem tantas, e eu sou um só."
Vivemos, por 349 páginas, o que eles vivem. Somos jogados para todos os lados; inseridos na indução quando tudo é dedução; inseridos num pequeno mundo quando tudo o que conhecemos são os aspectos desconhecidos do nosso próprio gigante mundo; somos confrontados com a minoria encarando a maioria; com o individual rivalizando com o geral; com dois humanos retirados da vida em grupo tornando a viver em sociedade;
"De noite, na nossa cama que não é a Cama, apalpei o edredom, que é mais gordo do que era o Edredom. Quando eu tinha quatro anos, não sabia do mundo, ou achava que era tudo história. Aí a Mãe me falou dele de verdade e eu achei que sabia tudo. Mas, agora que estou no mundo o tempo todo, de verdade não sei muita coisa, estou sempre confuso."
Tudo, para Jack, era o Quarto. Ele não sabia que existia algo por trás daqueles onze por onze pés. Não sabia nem mesmo que as pessoas na TV eram reais. Por isso fora impossível para ele compreender porquê a Mãe queria sair de lá. Ele se perguntava: por que o Velho Nick era ruim, se até presentes de domingo ele trazia? Por que um lugar seria desejável se este não fosse o Quarto?
"No mundo, eu noto que as pessoas vivem quase sempre tensas e não têm tempo. Até a Vovó sempre diz isso, mas ela e o Vopô não têm emprego, então eu não sei como as pessoas empregadas fazem o trabalho e toda a vida também. No Quarto, eu e a Mãe tínhamos tempo pra tudo. Acho que o tempo é espalhado muito fino em cima do mundo todo, feito manteiga, nas ruas e nas casas e nas pracinhas e nas lojas, por isso só tem um tiquinho de tempo espalhado em cada lugar, e aí todo mundo tem que correr pro pedaço seguinte."
E é por isso que esta é uma leitura tão avassaladora - nós redescobrimos o mundo por espectros novos e surpreendentemente acessíveis. São verdades duras, são aspectos frívolos, são rótulos inadmissíveis que não queremos ver. Eles estão bem alí, alguns centímetros/olhares/toques/pesquisadas/pensamentos de distância.
Após a leitura, somando os pensamentos profundos, multiplicando as dores, igualando as diferenças, pergunto-me qual lado seria mais fácil para Jack viver - o Quarto ou o Lá Fora. Um lugar com só um mal do mundo, ou outro com todos; um lugar com a Mãe e suas brincadeiras, o outro com a Mãe, a Vovó, o Vopô, o Tio Paul e milhares de jogos; ser Jack, filho amado, companheiro único e inigualável, ou Menino, entregue ao orfanato, com novas chances novas possibilidades e novos NOVOS. Essa fora uma questão que fez tremer minhas mãos e arrancar os cabelos; fora uma questão que quase levou a Mãe pro Céu mais cedo.
"- Por que ele é tio?
- Isso quer dizer apenas que ele é irmão do Leo. Todos os nossos parentes, agora você também é parente deles - disse a Vovó. - O que é nosso é seu.
- Lego - disse o Vopô.
- O quê? - ela perguntou.
- É como o Lego. Pedacinhos de famílias grudados uns nos outros.
- Isso eu também vi na televisão - contei.
A Vovó me encarou outra vez.
- Crescer sem Lego - ela disse ao Vopô -, eu simplesmente não consigo imaginar.
- Aposto que há uns dois bilhões de crianças no mundo que dão um jeito, de algum modo - ele respondeu."
Esta não é uma leitura para matar o tempo como a Mãe tomava os remédios para matar a dor. Esta não é uma leitura para ler apenas por ler; é pra se saborear, regurgitar, virar vaca e fazê-la passar por quatro estômagos, só para então digerir e ficar com todos os nutrientes que precisamos. Esta não é uma leitura que te mergulha em páginas e depois espera que você a guarde na prateleira: é uma leitura que se destina ao seu coração, e não a estante.
"- Cuidado.
Por que as pessoas só dizem isso depois do machucado?"
Algo que sobreviverá ao ácido do estômago e ao dissecar de líquidos do intenstino grosso. Algo que, se bem lido, irá com você pro caixão e então para o Céu.
"- A Vovó disse que tem mais dele.
- O quê?
- Pessoas como ele, no mundo.
- Ah - disse a Mãe.
- É verdade?
- Sim. Mas o segredo é que há muito mais gente no meio.
- Onde?
A Mãe ficou olhando pela janela, mas não sei pra quê.
- Em algum lugar entre o bom e o mau - ela disse. - Pedacinhos dos dois, grudados um no outro."
Este livro é um exemplo de um lugar entre o bom e o mau, cheio de pedacinhos de ambos grudados um no outro. É uma glória e uma maldição, te faz vibrar e te faz sofrer, mas é aí que está a graça. Nunca sabemos qual será nossa reação ao pegar uma obra original em mãos, mas só sei que gostaria de poder voltar naquele pontinho que antecede a descoberta maravilhosa de que nada no mundo se comparará a esse livro, aquela sensação deliciosa de que você não poderá esquecê-lo jamais. É, realmente, cheio de pedacinhos bons e maus grudados e juntinhos, se você parar pra pensar.
site:
https://www.instagram.com/laylafromthebooks/