Coruja 15/05/2019Harold Bloom talvez seja o mais conhecido crítico literário moderno. Polêmico e intransigente, é um defensor ferrenho dos clássicos e de uma concepção mais formalista da literatura, de arte pela arte. Para ele, lemos livros porque sentimos prazer em ler livros, não por questões de ideologia, manipulação, controle midiático ou coisa parecida - pontos que a crítica moderna passou a tomar como centrais na interpretação literária. Essa ‘escola do ressentimento’ - termo que o próprio Bloom cunhou - desprezaria a erudição dos clássicos, dando valor apenas a obras de impacto político e social.
Compreendo a necessidade de perceber a literatura também como uma ferramenta de dominação e exclusão, e concordo integralmente que precisamos expandir nosso horizonte. Para tanto devemos ler mais autores fora dos eixos estadunidense e europeu, de outros espectros sociais, sexuais, de gênero, o que seja... Não concordo, porém, que esse seja o critério único de avaliação da qualidade e importância da obra. Já escrevi um pouco sobre minha opinião do assunto no ensaio Censura e Empatia, mas, em síntese, acredito que não podemos deixar de falar da necessidade de inclusão, de representação nas histórias que consumimos. Tampouco, porém, podemos reescrever ou obliterar o passado, condenando livros e autores porque eles escreveram de acordo com as convenções e o contexto de suas épocas, ou porque não foram suficientemente progressistas para nosso gosto.
Não li A Cabana do Pai Tomás, considerado um dos maiores clássicos da literatura americana, mas já vi debates sobre esse livro condenando-o por sua atitude condescendente e estereotipada dos personagens negros do enredo. A ironia aqui fica por conta do impacto que o romance - escrito por uma mulher branca, Harriet Beecher Stowe -, teve no movimento abolicionista: dizem que o próprio Abraham Lincoln, ao encontrar com a senhora, comentou que sua história fora uma das causas da Guerra Civil.
Para nossa sensibilidade moderna, não duvido, o livro deve soar racista. Entretanto, no contexto de quando foi escrito, era uma obra à frente do seu tempo, que apresentou um problema social sério e serviu de gatilho para um debate e um movimento de reforma. Não tenho dúvida de que tem seus méritos literários, do contrário, não teria mexido tanto com seus leitores. Contudo, a depender da forma como se faça sua análise, será um livro desprezado por não atender à bandeira que tal e qual escola crítica defende, menosprezando a qualidade artística que eventualmente tenha.
Mais próximo de nós, há Monteiro Lobato. Alguns anos atrás, falou-se em censurar nas escolas a obra do autor, tendo em vista passagens racistas em alguns dos livros do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Agora em 2019, a obra dele caiu em domínio público e várias editoras prontamente lançaram suas versões. Algumas decidiram reescrever ou extirpar os trechos polêmicos. Outras adicionaram notas explicativas. Do meu lado, prefiro a segunda opção, afinal, não há como negar que existe racismo e preconceito ainda hoje e as notas serviriam como gancho para um debate sobre o assunto, em vez de simplesmente fingir que nunca aconteceu.
Isso é um debate bem longo e complicado, porque há argumentos válidos de todos os lados. Num mundo perfeito, a escolha seria do leitor - que teria maturidade suficiente para ler mesmo obras polêmicas e refletir sobre as mudanças sociais que tornaram posicionamentos do autor obsoletos. Ao mesmo tempo, editores dariam mais chances a escritores pertencentes a minorias de contarem suas próprias histórias, até haver uma diversidade grande de bons livros, que atendessem à identidade de qualquer leitor. Infelizmente, isso é hoje uma utopia, não levando em consideração riscos de mercado e outras variantes, mas, bem... por isso mesmo uso a expressão utopia.
Enfim, voltemos a Bloom. Não concordo com tudo o que ele diz, mas gosto das análises dele, da defesa que ele faz das obras que elege para seu O Cânone Ocidental. Vejo um tanto de graça na paixão que o faz deificar Shakespeare (por sinal, também é excelente o seu Shakespeare: a Invenção do Humano ), a ponto de usá-lo como critério de comparação para avaliar tudo o mais que o ocidente produziu. Essa obsessão gera algumas distorções, algumas ausências gritantes na lista de Bloom… porém, querendo ou não, quando você elabora uma lista como essa, são seus gostos pessoais que orientarão a escolha - as ausências que eu enxergo, por exemplo, vão do meu gosto, dos meus favoritos. Os livros que Bloom elege para seu cânone, em outras palavras, nunca serão unanimidade.
O que realmente ficou para mim da leitura de O Cânone Ocidental não é ‘a lista’ (muito criticada), nem mesmo o acerto das conclusões (eu mesma não concordo com muita coisa), mas a paixão pela literatura, a ideia de influências, de como diferentes obras conversam entre si. Costumo usar esse tijolinho (minha edição é de bolso, que comprei por uma bagatela quando visitei a Bienal do Livro no Rio de Janeiro em 2011) como material de referência, para quando quero conferir minhas notas da leitura com os insights de um crítico especializado. Bloom é polêmico, elitista, mas é também envolvente e traz bons argumentos para puxar um debate, quer você os aprove, quer você discorde completamente.
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