Peterson.Silva 03/10/2014
Bom, muito bom!
Giulia Carcasi tem algo a nos dizer sobre o amor. Não acho que seja nada de novo, e no campo de novelas coming of age nada de tão notável.
Há coisas irritantes. Eu estou até agora coçando a cabeça para tentar entender se há ou não uma certa dimensão moralizadora nesse livro porque a primeira pessoa com que se narra me parece mais uma desculpa para reforçar padrões bobos de gênero do que uma forma de simplesmente viver com eles como os personagens o vivem. Talvez seja uma coisa da Itália, na qual nunca pisei os pés (e olha, o sistema educacional do ensino médio da Itália consegue ser mais idiota que o nosso) Mas não é só isso. Ludovica, a puta, não é só slut-shamed o que seria de se esperar numa novela que trata do ensino médio no começo dos anos 2010 com o mínimo de crueza mas ao fazê-la má, mentirosa, manipulativa, etc a autora meio que pretende nos fazer torcer contra ela, como num pacote completo é que nós somos os shamers. E isso se baseia na dicotomia entre um uso liberal do próprio corpo e o amor, puro, imaculado e o único capaz de trazer felicidade mas também na equação entre um uso liberal do corpo e um certo vazio existencial e familiar.
Por um lado me sinto tentado a pensar nisso como uma questão da personagem não dá para negar que a falta de amor dos pais e pares na infância e na adolescência costuma levar à falta de amor próprio, à carência emocional Que por sua vez pode significar para a pessoa um impulso de se dar de todas as formas possíveis a troco de atenção. Mas e aí ela é representativa ou uma personagem própria? Não há uma possibilidade ontológica nesse vasto mundo de você aliar prazer carnal à busca sentimental? É possível expor o machismo dos discursos de alguns personagens no livro sem reduzir a crítica à defesa de um pudor, de um caminho único sem o qual ninguém consegue encontrar o verdadeiro amor? Existe algum adolescente na Itália cujos pais tenham uma relação minimamente estável?
Não sei.
Mas sei que, apesar dos incômodos, meu coração literário se acendeu quando comecei a ler a outra metade do livro (comecei pela Alice) e percebi que os diálogos não são os mesmos. Só de vez em quando, em momentos muito particulares e importantes momentos em que a memória não falha. Isso faz toda a diferença do mundo primeiro, estabelece que a narrativa não é objetiva (o que é possível mesmo na primeira pessoa), mas tingida por memória, afetada pela lembrança e pela impressão que se tem do outro (Alice é praticamente outra pessoa no lado de Carlo). E mais: quando a narrativa não altera as palavras, significa uma importância, uma fixação do momento de maneira mais forte, mais segura. É como uma forma de negrito, de itálico, de ênfase que não precisa da grafia, mas apenas de uma pausa, de um tempo, de uma reflexão breve sobre o momento. Achei muito bem executado.
Ou seja, em termos estilísticos o livro é interessante: tem parágrafos curtos, breves, que beiram às vezes o excesso de perspectiva (e só achei piegas uma vezinha só) mas em outros tem sacadas poéticas maravilhosas. Não tem tanta amplitude quanto os personagens de, por exemplo, o brasileiro "Ainda Não Te Disse Nada", e uma estética, no fundo, melancólica; é um mundo quase em suspensão, em que só os personagens dentro do livro se movem numa península de estátuas e sombras os próprios personagens, autômatos de bateria intermitente, parecem se mexer só enquanto alguém presta atenção neles. Depois não voltam para a própria vida; viram bonecos de cera num museu do tamanho do mundo. Talvez seja consequência da extrema introspecção e autorreferência dos personagens ao contar a história. Pensando melhor, parece até meio aterrorizante esse clima empoeirado E Malari até garante que o seja num determinado momento. Mas o final é otimista, e nos faz sentir abraçados o bastante para sorrir; sorrir com o futuro e também com o passado.
site: http://pormaisuma.com/2014/10/dois-romances-romanticos/