Fernanda.Redfield 24/05/2018
Amor e amadurecimento
"Toque de Veludo" é o primeiro romance da escritora britânica Sarah Waters. É um romance histórico que narra a trajetória de Nancy Astley, de uma jovem ajudante do restaurante da família dedicado às famosas ostras de Whistable e apaixonada pelo universo dos music halls à estrela no palco, desgraçada no amor e na vida profissional. A trama destaca-se das demais por narrar, abertamente, a orientação sexual "invertida" (nas palavras da Londres dos anos 1890) e transformar tudo isso, sem qualquer momento escandaloso, em uma jornada de amadurecimento da pessoa e do amor.
O livro divide-se em três partes, cada uma, de certa forma, narrando uma das mulheres na vida de Nancy.
A Parte I narra o primeiro amor da protagonista por Kitty Butler, uma jovem atriz dos music halls conhecida por "transformar-se" em homem nos palcos. Todos os elementos do primeiro amor estão presentes nessa parte do enredo: a ingenuidade, a incerteza da correspondência, os sonhos, a sensação de invencibilidade... A autora até mesmo usa de uma prosa mais poética para narrar, em primeira pessoa, cada aspecto do objeto de afeição. São linhas que descrevem toques, sensações, ofegares e olhares. Em que cada minúcia do comportamento humano é destrinchado por Nancy à procura de receptividade e compreensão que ela encontra. Nancy e Kitty vivem um amor às escondidas que bastava a elas até um ponto em que, juntamente com a ascensão de Nancy - agora, Nan King - aos palcos com Kitty, ela também se sente insaciável querendo que todos saibam sobre o que dividiam atrás de portas fechadas. É impressionante a escala de crescimento da tensão entre as duas, tanto para o romance quanto para o fim dele. Sarah Waters consegue transmitir a angústia em suas duas frentes, ao amor não correspondido e ao fim dele, da mesma forma, também consegue narrar de forma brilhante as etapas de descobrimento sexual, tornando-as extremamente reais mesmo com a história situando-se há centenas de anos.
A primeira parte acaba, mas, de certa forma, ela permanece onipresente durante todo o livro porque o amor de Nancy por Kitty não para nem diante de seu coração quebrado.
A Parte II inicia-se diante da decepção amorosa. Nancy perde a sua ingenuidade, os seus sonhos e, até mesmo, a sua paixão pelo teatro. De certa forma, é dramático como ela se reduz a um coração quebrado nas primeiras partes dessa segunda etapa... Nancy transforma-se de mulher apaixonada e atriz para uma desacreditada no amor e prostituta. A degradação da personagem acompanha a decadência social da mesma, nem mesmo o surgimento de uma mulher "diferente" (e que aparecerá lá pra frente, no romance) consegue amenizar a escuridão instalada em si... Nancy acostuma-se à uma vida em que vende, agora, não o seu talento e sim, o seu corpo. E outra mulher entra em sua vida para reforçar esse aspecto. Como a própria Nancy pontua em sua narrativa, era necessário que ela amasse outra para superar Kitty e é nesse cenário que aparece Diana Lethaby, mulher mais velha e experiente que não procura amor e sim, prazer. Se a primeira parte do livro era apaixonada, a segunda é luxuriosa, a descrição é chula assim como os termos, o ênfase está no corpo e não nas sensações. Diana é feita de luxúria e prazer descarados, certa de sua sexualidade, ela não teme a experimentação e nem a objetificação. E é dessa forma que Nancy encaixa-se em sua vida. A nossa protagonista torna-se um instrumento do prazer que tem os sentimentos ignorados, por mais que eles existem. Nancy acostuma-se à luxúria, ao luxo e aos ganhos, mas, jamais cura o coração machucado. E, assim, despudorada, ela fraqueja e falha justamente quando precisa de alguém... Aqui, a segunda parte acaba, ainda pior do que a primeira.
Nancy está ainda mais desgraçada no início da última parte da vida. Privada financeiramente e sentimentalmente, do amor e da luxúria, ela se vê nas ruas de Londres enfrentando a realidade. Essa é a parte mais real do livro, com Nancy percorrendo ruas em busca de generosidade e bondade, coisas que jamais valorizou porque sempre teve tudo em seus braços, fosse como atriz ou instrumento de prazer. As mulheres em sua vida tiraram-lhe tudo, desde a sua vocação ao seu próprio corpo e ela toma a decisão de não mais inverte-se. Nancy queria ser normal e por isso que ela reencontra Florence. A mesma garota diferente que encontrara antes de ceder ao que Diana oferecia. Uma garota que, à primeira vista, não tinha nada de especial e que, com uma convivência forçada pela própria Nancy, muda lentamente diante dos olhos da protagonista. O amor, dessa vez, é fruto do tempo e não da ânsia juvenil ou dos luxos materiais. Ambas, Florence e Nancy, são garotas quebradas que tomam a decisão de tentarem ser felizes pelos próximos dias e assim tentam, dia após dia, enfrentando discussões e dificuldades, resistindo de uma forma que Kitty e Diana, com Nancy, não resistiriam.
É muito bonito como as histórias de amor de Nancy confundem-se com o amadurecimento de sua condição como mulher e, também, de sua sexualidade. A Nancy que começa o romance não é, de forma alguma, a mesma que o termina. O livro narra os anos entre os 18 e os 25, porém, parece que narra uma vida inteira, tamanha é o estudo dos personagens.
E, talvez, devido a essa impressão, a minha maior crítica seja ao pouco tempo de Florence nas páginas. A personagem é tão carismática que o livro termina com a necessidade de tê-la por mais um tempo. Contudo, pode ser que seja da natureza da autora deixar esse "querer mais" quando ela já tinha destrinchado tudo sobre Kitty, isso torna Florence diferente dela.
Salvo, também, a conveniência no enredo do último capítulo, "Toque de Veludo" é um romance incrível sobre amadurecimento e vivência homossexual. Além de ter uma ambientação perfeita da Londres dos anos 1890 e, também, da cultura londrina com os seus teatros, music halls, prostituição e sociedades existentes abaixo do que era considerado moral, além de flertes com o Movimento Sufragista. É um romance histórico perfeitamente adornado que sabe narrar os eventos de uma parcela tão desprezada até hoje.
E, antes de fechar, gostaria de deixar uma das passagens mais belas do livro, dita por Nancy: "(...) partiu meu coração. Achei que ela o tinha matado! Achei que somente ela poderia remendá-lo! E por isso desejei, durante cinco anos, que ela voltasse. Por cinco anos, mal me permiti pensar nela, com medo de enlouquecer com o sofrimento. Agora ela veio, dizendo tudo que sempre sonhei que dissesse, e encontrou meu coração inteiro, já refeito por você."
"Toque de Veludo" amadurece junto com a sua protagonista e termina, exatamente como ela, diante de um amor que é justamente o que deve ser. Recomendo!