Arsenio Meira 04/04/2015
"Mas na hora mais densa opaca íntima em que um espelho cego cobra o sendo nem glória nem riqueza nem poder: - só interessa mesmo o que lhe falta.""
Em O centauro no jardim a enunciação começa com as lembranças do homem Guedali, filho de um casal de imigrantes judeus, que se encontra num restaurante com sua mulher e amigos a fim de comemorar os seus trinta e oito anos, que rememora as diferentes fases do seu passado. Ao organizar sua memória, relata como nasceu centauro, numa fazenda no interior do Rio Grande do Sul, como galopou pelos pampas, como conheceu a mulher-centauro, Tita, submetendo-se ambos a uma cirurgia no Marrocos para extraírem suas partes equinas.
No entanto, as palavras Iniciais proferidas por Guedali: “Somos, agora, iguais a todos” (p. 07), tal como no conto kafkiano, traem a suposta sensação de fim do processo metamórfico, já que resquícios do passado equino continuam a fazer parte integrante da constituição psíquica e física de Guedali. Após mil e uma aventuras como bom burguês, contrariamente à imagem do cavalo em harmonia com a natureza que corre sem um destino preciso, Guedali inicia uma viagem em busca de si próprio.
Uma viagem que começa numa fazenda em Quatro Irmãos, passa por Porto Alegre, pelas fronteiras do Rio Grande do Sul, vai ao Marrocos, volta a São Paulo, novamente ao Marrocos para, finalmente, retornar ao ponto de partida: a antiga fazenda em Quatro Irmãos. Após todas essas errâncias e o constante exílio, Guedali sente a necessidade de voltar às origens. Não lhe bastou ter se instalado numa cidade, ter se casado, tido dois filhos sem nenhuma deficiência,ocupar um bem sucedido posto de trabalho ou possuir uma bela e confortável casa. Todos esses esforços para se assimilar à nova realidade capitalista brasileira não foram capazes de apagar o centauro que vivia nele.
Aqui convivem e convergem para um mesmo fim o real e o fantástico; o humano e o selvagem; a liberdade e a moralidade social; o racional e o irracional. Um grande romance, também fomentado em crítica ao preconceito em geral; no caso de Moacyr, pode ser atribuído ao judaísmo, e ao capitalismo selvagem, bem retratado na figura repugnante do médico marroquino. Riquíssima, é inundada de preciosas informações da cultura judaica, contribuindo notavelmente, para a ampliação do conhecimento universal a respeito de um povo sofrido, cuja inteligência e perseverança são legados tão preciosos, que não dá pra enumerar.
E tudo muito simples, tudo muito natural, numa escrita fluente, como se a bossa nova fosse uma Rolleiflex trilhando fotografias ao lado de Guedali para sempre. Centauros não morrem, ao menos em nossa imaginação.