jota 25/10/2020BOM (uma boa história de “amor impossível”, mas um tanto cansativa de se acompanhar)As gerações mais jovens da Turquia aspiram a que o país faça parte da comunidade européia de nações, desejam usufruir das benesses que enxergam nos países europeus, na Alemanha, principalmente, para onde foram muitos imigrantes turcos há algum tempo já. Também parecem desejar livrar-se dos antigos padrões turcos de comportamento, muitas vezes ditados por rígidas normas religiosas (muçulmanas). Mas sobre o jovem adulto Kemal, personagem central de O Museu da Inocência, que já levava uma vida um tanto ocidentalizada em Istambul, praticamente desde o nascimento nos anos 1950 numa família de classe média alta, que já havia passado algum tempo nos EUA, também viajado pela Europa, os padrões tradicionais de comportamento vigentes no pais não tinham tanto peso. Ele pensava à européia, digamos...
Kemal parecia ter como país perfeito a França, melhor, Paris (e não Berlim ou outra capital próxima) como o lugar mais encantador para se viver ou passar algumas temporadas na cidade, não sozinho, claro, mas acompanhado de uma bela mulher. Alguém como a formosa e fogosa Füsun, uma parente distante vários anos mais nova que ele e sem grandes posses, pobre mesmo, que trabalhava como vendedora numa loja de artigos femininos. Kemal estava noivo da bela, rica e culta Sibel, mas quando reviu Füsun aos dezoito anos, depois de um longo tempo sem encontrar-se com ela (desde que era menina), decidiu que aquela seria a mulher de sua vida. Após muitos encontros com a moça num apartamento usado como garçonière, em muitas tardes de amor ardente entre os amantes, ele entende que não deseja mais casar-se com Sibel. Desfaz o noivado decidido a viver o resto de sua vida com Füsun. Mas não serão somente flores no caminho para o coração da moça, também muitos espinhos...
Bem, resumido assim, o caso se parece, suponho, com várias histórias de amor que entopem livrarias e bibliotecas mundo afora, e que são avidamente consumidas pelo público leitor feminino. Nada mais distante disso. The New York Times escreveu que O Museu da Inocência é “um delicioso romance sobre como um primeiro amor resiste dolorosamente a uma vida inteira.” E tendo sido escrito por um ganhador do Nobel de literatura (premiado em 2006), Orhan Pamuk, era de se esperar que o livro tivesse alguns ingredientes diferentes daqueles encontrados nas tradicionais histórias românticas. De fato. A narrativa, que compreende principalmente os anos entre 1975 e 2008 (quando o romance foi lançado), traz muitos dados sobre Istambul, sua história, geografia e cultura (cinema e música, especialmente), também sobre a Turquia como um todo, com muita informação acerca da vida política no país, que passou (ou passa, já que a Turquia não é exatamente um país democrático) por períodos conturbados, especialmente nos anos 1970-1980.
Curiosa ou propositalmente, o personagem principal tem o mesmo nome do primeiro presidente da Turquia moderna, Kemal Atatürk, que declarou Ancara como a capital do país em 1923 e é citado inúmeras vezes no livro. Quase tanto quanto ele, Orhan Pamuk, o próprio autor do livro, se faz presente na narrativa. Entramos no terreno da metaficção, mais um ingrediente acrescentado à estrutura do livro. Kemal, o personagem, chama o escritor Orhan Pamuk, amigo de sua família, que já havia estado em sua festa de noivado com Sibel e até memo dançado com Füsun na ocasião, para finalizar, melhor, escrever a história de sua vida, com ênfase na (longuíssima) parte que trata de seu amor por Füsun, uma interminável epopeia. Ou odisséia, não sei bem... Claro que Pamuk aceita a tarefa, e nesse ponto Kemal cede seu lugar ao nobelizado escritor, que se apresenta assim (com maiúsculas mesmo, para chamar a atenção de algum leitor desavisado, talvez):
“OLÁ, AQUI É ORHAN PAMUK! Com a permissão de Kemal Bey, começarei descrevendo minha dança com Füsun: ela era a jovem mais bonita da festa naquela noite, e eram muitos os homens que esperavam a vez de dançar com ela. Eu não era bonito nem ousado o bastante para atrair sua atenção, e, embora cinco anos mais velho que ela, não tinha, como direi, a maturidade necessária, e naquele tempo tampouco era muito seguro de mim. Minha mente vivia abarrotada de pensamentos moralistas, livros e romances, de maneira que me foi impossível aproveitar aquela noite. Que o espírito dela estava ocupado com questões muito diversas, vocês já sabem.” Estava ocupado, muito preocupado, com o noivado de seu amante com Sibel, claro.
Com a entrada definitiva de Orhan Pamuk em cena, temos especialmente o desfecho da história, que não vale a pena adiantar aqui, estragar o prazer de quem se aventurar a atravessar as mais de 550 páginas do livro, que parece ter muito mais do que isso. Por vezes fica parecendo que a história roda, roda, e não sai do lugar. Não estamos lendo sempre a mesma coisa, sobre os prazeres e os infortúnios do amor, mas parece que sim, que as coisas estão a se repetir. Que já lemos tudo aquilo antes sob outra forma, uma sensação que foi sentida por vários leitores. Enquanto Pamuk dá conta de narrar a história de Kemal e Füsun, o rapaz continua sua tarefa iniciada há vários anos, desde que passara a se encontrar na garçonière com a amante: colecionar peças que trouxessem a presença da amada a sua memória, sempre. Isso incluía fósforos usados, bitucas de cigarros manchadas com o batom dela, grampos de cabelo, até mesmo um ralador de marmelo furtado da cozinha da mãe dela...
São peças que junto com inúmeras outras compõem o tal museu do título, da inocência, porque era feito de amor puro (conforme acreditava Kemal) e que de fato existe em Istambul. Sua inauguração se deu em 27 de abril de 2012 e deve ter sido notícia no mundo (cultural) todo. Reproduzo, a seguir, parte do texto publicado no site do G1 daquele dia: “O prêmio Nobel turco de Literatura Orhan Pamuk inaugurou nesta sexta-feira (27), em Istambul, seu "Museu da Inocência", um estranho espaço dedicado à memória de personagens fictícios saídos de seu último romance, mas que também fala de emoção literária e da vida em Istambul. No total, 83 vitrines - uma para cada capítulo do romance "O Museu da Inocência", publicado em 2008 - reconstituem passo a passo o amor impossível de Kemal, um istambulita de uma família abastada prestes a se casar, por Fusun, uma prima distante pobre, na Istambul dos anos 1970.” É isso aí: a vida, mais uma vez, imitando a arte...
Lido entre 04 e 24/10/2020.