Fabio.Nunes 25/03/2024
E o final flopou
Jane Eyre - Charlotte Brontë
Editora: Zahar, 2018
Abandonem toda a esperança, vós que esperais uma resenha minimamente adequada a esse livro!
Jane Eyre me trouxe tantos sentimentos conflitantes, me fragmentou de um jeito tão pujante, que conseguiu afetar meu humor durante os dias em que o li, principalmente quando o terminei. Poucas vezes tive reações tão fortes a personagens fictícios e a um final de livro. Nunca fiquei tão confuso ao resenhar uma leitura. Explico.
Até o capítulo 36 (o antepenúltimo) sou capaz de dar 5 estrelas, aplaudir de pé e fazer coro a todas as vozes que elogiam de forma apaixonada essa obra.
Após isso, Charlotte decide escolher um final que para mim, foi, no mínimo, assustador, e me causou uma imensa decepção.
Este é um romance vitoriano com fortes traços góticos, publicado em 1847, que nos apresenta a autobiografia de Jane Eyre, desde sua infância: uma mulher sem atrativos físicos, órfã, pobre, mas extraordinária, absolutamente extraordinária! Um ser desde sempre incapaz de aceitar os grilhões que os homens ou a sociedade tentam impôr às mulheres, que anseia pelo mundo que se abre diante de si.
?Milhões estão condenados a um destino mais pacto do que o meu, e milhões se revoltam em silêncio contra ele. Ninguém sabe quantas rebeliões, para além das rebeliões políticas, fermentam nas massas de vida que as pessoas enterram."
Senti de imediato uma identificação com esse ser transgressor, que se liberta por meio de sua capacidade de raciocínio. Cá comigo eu gritava ?isso! vai garota!?.
"Meu olhar percorreu a paisagem e repousou nos picos azuis à distância. Eram eles que eu ansiava transpor; tudo o que ficava aquém de seu círculo de rocha e urze me parecia uma prisão, um exílio."
Não vou aqui enunciar os acontecimentos do livro, ainda que eu entenda que os spoilers neste caso não diminuiriam a grandiosidade dessa obra (até o capítulo 36!). Vou deixar apenas algumas observações.
Charlotte Brontë escreve de forma primorosa, e cria uma personagem feminina tão tridimensional que somos capazes de tocá-la. Brinca com as peculiaridades e conflitos que são parte da personalidade humana. Desde o início já sabemos estar diante de uma escritora extraordinária.
Os elementos góticos e sombrios que permeiam a obra tampouco são colocados ali à toa, funcionando muitas vezes como presságios, não apenas como elementos psicológicos e caracterizações de cenários.
Mas a temática principal da obra é o feminino. Por meio de Jane, Charlotte critica a sociedade dominada pelos homens, que aprisiona as mulheres em funções meramente operacionais, de simples suporte doméstico, sem jamais vê-las com igualdade. Estamos falando do período vitoriano puritanista, onde a religião tem papel fundamental na moral dos indivíduos.
"Das mulheres se espera que sejam muito calmas, de modo geral. Mas as mulheres sentem como os homens. Necessitam exercício para suas faculdades e espaço para os seus esforços, assim como seus irmãos; sofrem com uma restrição rígida demais, com uma estagnação absoluta demais, exatamente como sofreriam os homens. E é uma estreiteza de visão por parte de seus companheiros mais privilegiados dizer que elas deveriam se confinar a preparar pudim e tricotar meias, a tocar piano e bordar bolsas. Insensato condená-las ou rir delas se buscam fazer mais ou aprender mais do que o costume determinou necessário ao seu sexo."
Além disso, conhecemos a selvagem e louca Bertha Mason, uma espécie de antagonista, reflexo metafórico, e par gótico psicológico de Jane Eyre.
Mas o que mais salta aos olhos na obra são os dois momentos em que Jane se vê diante do abuso masculino.
O primeiro abusador, Sr. Rochester (infelizmente o homem que ela ama):
"Jane, precisa ser razoável, ou eu vou mesmo me descontrolar outra vez.
(?)
- Jane eu não sou um homem de temperamento dócil, você se esquece disso: não tolero muita coisa, não sou frio e equilibrado. Se tem pena de mim e de você mesma, ponha o dedo no meu pulso e veja como ele lateja...tome cuidado!?
(...)
?Um mero caniço ela parece, na minha mão! (E ele me sacudiu com a força do seu braço.) Poderia dobrá-la com indicador e o polegar, mas de que adiantaria se a dobrasse, se a arrancasse do chão, se a esmagasse? Considere esse olhar: considere o ser resoluto, selvagem e livre que está por trás dele, desafiando-me com mais do que coragem... Com um grave triunfo. O que quer que eu faça com sua gaiola, não consigo atingi-la... Essa bela criatura!"
O segundo, Sr. St. John (uma das mais odiosas personagens masculinas da literatura para mim):
"Aproveite esse tempo para considerar minha oferta, e não se esqueça de que se a recusar não é a mim que nega, mas a Deus. Por meu intermédio, Ele descortina uma nobre carreira para você, a qual só pode assumir como minha esposa. Recuse-se, e estará se limitando para sempre a um caminho de facilidade egoísta e obscuridade infrutífera. Será incluída entre aqueles que negaram a fé, e que são piores que os infiéis."
Tudo isso nossa protagonista sofre ? e nós com ela, mas se liberta de seus abusadores para, por si mesma, tomar uma decisão sombria e absurda no final, da qual não falarei para evitar spoilers.
Talvez minha decepção seja fruto de puro anacronismo, não nego, mas é duro ler uma obra tão extraordinária, tão libertária para as mulheres, e ver sua protagonista tomar uma decisão que tantas mulheres abusadas tomam hoje em dia.