spoiler visualizarDarkpookie 12/12/2020
Trechos
George Orwell e a política da verdade | Lionel Trilling (1952)
[...]
“Admiramos gênios, os amamos, mas eles nos desestimulam. São grandes concentrações de intelecto e emoção, sentimos que eles absorveram todo o poder disponível, monopolizaram-no e não deixaram nada para nós. Sentimos que, se não pudermos ser como eles, não seremos nada.”
[...] “se renunciássemos um pouco à hipocrisia afetada que nos conforta, se por algumas semanas não déssemos atenção ao pequeno grupo com que costumamos trocar opiniões, se aproveitássemos a chance de estar errado ou inadequado, se olhássemos para as coisas de forma direta e simples, tendo em mente apenas nossa intenção de descobrir o que realmente são, não o prestígio de nosso grande ato intelectual de olhá-las.”
1 | Os dias são sempre iguais
Um dia na vida de um vagabundo (A day in the life of a tramp)
[...]
“O vagabundo não perambula para se divertir, ou porque herdou os instintos nômades de seus ancestrais; antes de mais nada, ele tenta não morrer de fome.
Não é difícil ver por quê: o vagabundo está desempregado em consequência da situação da economia inglesa. Assim, para existir, ele precisa apelar à caridade pública ou privada.” [...]
“A vida desses vagabundos é degradante e desmoralizadora. Em muito pouco tempo pode transformar um homem ativo em eterno desempregado e parasita.”
(A forma como os "vagabundos" são tratados é extremamente degradante. É claro que nesse texto, Orwell traça a realidade inglês da época, mas me parece que no Brasil não estamos muito melhores no que diz respeito ao tratamento aos moradores de rua.)
[...]
“Por fim, o vagabundo, que não cometeu nenhum crime e que, no fim das contas, não passa de uma vítima do desemprego, está condenado a levar uma vida mais miserável que a do pior criminoso. Ele é um escravo com uma aparência de liberdade que é pior do que a mais cruel escravidão.”
O albergue (The spike)
[...]
“A maioria dos vagabundos passava dez horas consecutivas naquela sala lúgubre. É difícil imaginar como aguentavam. Passei a pensar que o tédio é o pior de todos os males de um vagabundo, pior do que a fome e o desconforto, pior ainda do que o sentimento constante de ser socialmente desfavorecido. É uma crueldade estúpida confinar um homem ignorante o dia inteiro sem nada para fazer; é como prender um cão num barril. Só um homem instruído, que encontra consolo dentro de si mesmo, pode suportar o confinamento. Os vagabundos, tipos iletrados como quase todos são, encaram sua pobreza com mentes vazias, sem recursos. Imobilizados durante dez horas num banco desconfortável, não conhecem maneira de se ocupar, e se chegam a pensar, é para choramingar sobre a má sorte e ansiar por trabalho. Não têm dentro deles recursos para suportar os horrores do ócio. E assim, uma vez que passam grande parte de suas vidas sem fazer nada, sofrem as agonias do tédio.”
[...] “meu jantar veio da mesa do asilo e foi uma das maiores refeições que eu já havia feito. Um vagabundo não vê uma refeição como aquela duas vezes por ano, no albergue ou fora dele. Os mendigos me contaram que se empanturravam a mais não poder aos domingos e passavam fome seis dias por semana. Quando terminou a refeição, o cozinheiro me pôs para lavar pratos e mandou jogar fora os restos da comida. O desperdício era espantoso: grandes pratos de carne e baldes de pães e legumes foram jogados fora como lixo e depois sujos com folhas de chá. Enchi cinco latas de lixo com comida boa. E enquanto eu fazia isso, meus colegas vagabundos estavam sentados a duzentos metros dali, com as barrigas meio cheias com o jantar do albergue de pão e chá eternos e talvez duas batatas cozidas frias, em homenagem ao domingo. Jogar comida fora parecia ser uma política deliberada, em vez de dá-la aos vagabundos.”
[...] “conversei com um vagabundo de ar um tanto superior.” [...] “Mantinha-se um pouco afastado dos outros vagabundos e se comportava mais como homem livre do que como indigente.” [...]
[...] “Ele criticou o sistema que fazia um vagabundo passar catorze horas por dia no albergue e as outras dez caminhando e driblando a polícia. Falou de seu caso: seis meses às custas dos cofres públicos por falta de três libras esterlinas de ferramentas. Era uma idiotice. Então lhe contei sobre o desperdício de comida na cozinha do asilo e o que eu pensava daquilo. Ao ouvir isso, ele mudou de tom imediatamente. Vi que havia despertado o pew-renter que há em todo trabalhador inglês. Embora tivesse passado fome como os outros, de imediato ele viu boas razões para jogar a comida fora, em vez de dar aos vagabundos. Advertiu-me com severidade.
“Eles têm de fazer isso”, disse ele. “Se tornarem esses lugares confortáveis demais, toda a escória do país virá para cá. É somente a comida ruim que mantém essa escória longe. Esses mendigos são preguiçosos demais para trabalhar, esse é o problema deles. Você não vai querer encorajá-los. São uma escória.”
Apresentei argumentos para provar que ele estava errado, mas ele não me deu ouvidos. Continuava repetindo:
“Não me diga que você tem piedade desses vagabundos — escória, isso é o que eles são. Não se pode julgá-los pelos mesmos padrões de homens como você e eu. Eles são escória, só escória.”
Era interessante ver o modo sutil como ele se dissociava dos colegas vagabundos. Estava na estrada havia seis meses, mas, aos olhos de Deus, parecia dizer, não era um vagabundo. Seu corpo podia estar no albergue, mas seu espírito estava longe, no puro éter da classe média.”
(Realmente um fenômeno interessante. As pessoas tendem a se identificar mais com pautas de classes mais altas do que com as classes das quais realmente ocupam. Por quê?)
Em cana (Clink)
[...]
“Uma observação feita por aqueles homens me espantou — eu a ouvi de quase todos os prisioneiros que seriam julgados por um delito grave. Era: “Não é a prisão que me preocupa, é perder meu emprego”. Creio que isso é sintomático do poder decrescente da lei em comparação com o do capitalista.”
Como morrem os pobres (How the poor die)
[...] “No momento seguinte, porém, o médico e o estudante vieram até minha cama, me ergueram e sem dizer palavra começaram a aplicar o mesmo conjunto de copos, que não haviam sido de forma alguma esterilizados. Alguns débeis protestos que pronunciei não obtiveram nenhuma resposta, como se eu fosse um animal. Eu estava muito impressionado com a maneira impessoal como os dois homens me trataram. Eu nunca estivera numa enfermaria pública de um hospital e era minha primeira experiência com médicos que lidavam com a gente sem falar com a gente, ou, num sentido humano, sem reparar na gente.” [...]
[...] “Mais tarde, o médico alto, solene, de barba preta fez sua ronda, com um interno e uma tropa de estudantes em seus calcanhares, mas havia em torno de sessenta de nós na enfermaria e era evidente que ele tinha outras alas para visitar também. Havia muitas camas pelas quais ele passava dia após dia, às vezes seguido de gritos de súplica. Por outro lado, se você tivesse alguma doença com a qual os alunos quisessem se familiarizar, então ganhava muita atenção. De minha parte, eu que estava com um excepcionalmente belo espécime de chocalho bronquial, tinha às vezes até uma dúzia de estudantes fazendo fila para escutar meu peito. Era uma sensação muito esquisita — esquisita porque ao lado do interesse deles em aprender a profissão havia uma aparente falta de qualquer percepção de que os pacientes eram seres humanos.” [...] “Na qualidade de paciente não pagante, no uniforme de camisão, a gente era sobretudo um espécime, uma coisa da qual não me ressentia, mas com a qual nunca me acostumei muito bem.”
[...] “Curiosamente, era o primeiro europeu morto que eu via. Já havia visto homens mortos, mas sempre asiáticos e, em geral, gente que tivera mortes violentas. Os olhos do Número 57 continuavam abertos, a boca também aberta, seu rosto pequeno contorcido numa expressão de agonia. Porém, o que mais me impressionou foi a brancura de seu rosto. Ele estava pálido antes, mas agora estava pouco mais escuro que os lençóis. Enquanto olhava para aquele rosto minúsculo e retorcido, ocorreu-me que aquele resto repugnante de matéria que esperava para ser levado embora e jogado sobre uma lousa na sala de dissecação era um exemplo de morte “natural”, uma das coisas pelas quais se reza na litania. Eis aí, pensei, o que te espera, daqui a vinte, trinta, quarenta anos; é assim que os sortudos morrem, os que vivem até a velhice. A gente quer viver, é claro; na realidade, só ficamos vivos em virtude do medo da morte, mas penso agora, como pensava então, que é melhor morrer violentamente e não velho demais. As pessoas falam dos horrores da guerra, mas que arma o homem inventou que se aproxime em crueldade de algumas das doenças mais comuns? A morte “natural”, quase por definição, significa alguma coisa lenta, fedorenta e dolorosa. Mesmo assim, faz diferença se você pode alcançá-la em sua casa e não numa instituição pública. Aquele pobre infeliz que acabara de apagar como uma vela não era importante nem para ter alguém velando em seu leito de morte. Era apenas um número, depois um “objeto” para os bisturis dos estudantes.” [...]
“Nas enfermarias públicas de um hospital veem-se horrores que a gente parece não encontrar entre as pessoas que conseguem morrer em casa, como se certas doenças só atacassem pessoas dos estratos de renda mais baixos.” [...]
[...] “Mas a atitude da maioria era: claro que é um lugar abominável, mas que mais esperar? Não lhes parecia estranho ser acordado às cinco da manhã e depois esperar três horas para tomar uma sopa aguada, ou que as pessoas morressem sem ninguém ao seu lado, ou mesmo que sua chance de obter atenção médica dependesse de captar o olhar do médico quando ele passava. De acordo com seus costumes, os hospitais eram assim. Se você está gravemente enfermo e se é pobre demais para ser tratado em casa, então deve ir para um hospital e, uma vez lá, deve aguentar os maus-tratos e o desconforto, como no Exército.” [...]
“Nos últimos cinquenta anos, mais ou menos, houve uma grande mudança na relação entre médico e paciente. Se olharmos para quase toda a literatura anterior à segunda metade do século XIX, veremos que o hospital é popularmente considerado parecido com uma prisão, e uma prisão antiquada, do tipo masmorra. O hospital é um lugar de imundície, tortura e morte, uma espécie de antecâmara do túmulo. Ninguém que não fosse mais ou menos miserável pensaria em entrar num lugar desses para tratamento. E especialmente na primeira parte do século passado, quando a ciência médica se tornou mais ousada que antes, sem ser mais bem-sucedida, todo o negócio da medicina era visto com horror e temido pelas pessoas comuns. Acreditava-se que a cirurgia, em particular, não passava de uma forma peculiarmente medonha de sadismo, e a dissecação, possível somente com a ajuda de ladrões de cadáveres, era até confundida com a necromancia. Era possível coletar uma farta literatura de horror do século XIX ligada a médicos e hospitais.” [...] “Se pensarmos em como deveria ser uma operação sem anestesia, o que acontecia de fato, não é difícil suspeitar dos motivos das pessoas que se submetiam a tais coisas. Pois esses horrores sangrentos pelos quais os estudantes esperavam com tanta avidez (“Uma visão magnífica, se Slasher a faz!”) eram reconhecidamente mais ou menos inúteis: o paciente que não morria de choque em geral morria de gangrena, resultado que era dado como certo. Ainda hoje é possível encontrar médicos cujos motivos são questionáveis. Quem já teve muitas doenças, ou escutou a conversa de estudantes de medicina, saberá do que estou falando. Mas os anestésicos provocaram uma mudança decisiva, assim como os desinfetantes.” [...]
2 | A insinceridade é inimiga da linguagem clara
Em defesa do romance (In defence of the novel)
[...] “o desrespeito em que recaiu a resenha de romances se estendeu aos próprios romances. Quando todos os romances são despejados sobre nós como obras de gênio, é natural supor que todos são lixo.” [...]
[...] “A resenha mercenária é, na verdade, uma necessidade comercial, como a opinião na sobrecapa, da qual é uma mera extensão. Mas mesmo o pobre resenhista mercenário não deve ser culpado pelas idiotices que escreve. Nas circunstâncias especiais em que se encontra, não poderia escrever outra coisa, pois, mesmo que não houvesse suborno, direto ou indireto, não pode haver uma coisa como crítica de um bom romance enquanto se supor que todos os romances são dignos de resenha.”
[...] “Não há como escapar disso depois que se cometeu o pecado inicial de fingir que um livro ruim é bom. Mas não se pode resenhar romances para ganhar a vida sem cometer esse pecado. E, enquanto isso, os leitores inteligentes dão as costas, enfastiados, e desprezar romances se torna uma espécie de dever esnobe. Daí o fato esquisito de ser possível que um romance de verdadeiro valor passe despercebido, simplesmente porque foi elogiado nos mesmos termos que uma besteira.”
[...] “seria bom que mais resenhas de romances fossem feitas por amadores. Um indivíduo que não é um escritor experiente, mas que acabou de ler um livro que o impressionou profundamente, lhe dirá com maior probabilidade qual o tema da obra do que um profissional competente, mas entediado.” [...]
A poesia e o microfone (Poetry and the microphone)
[...]
“Esses programas de que estou falando não tinham grande valor em si mesmos, mas os mencionei devido às ideias que provocaram em mim e alguns outros sobre as possibilidades do rádio como meio de popularizar a poesia. De início, fiquei impressionado porque a leitura no rádio de um poema por quem o escreveu não provoca impacto apenas na audiência — se é que provoca algum —, mas também no próprio poeta. Não devemos esquecer que se fez extremamente pouco em matéria de transmissão de poesia pelo rádio na Inglaterra, e que muitas pessoas que escrevem versos nunca consideraram a hipótese de lê-los em voz alta. Ao ser posto diante de um microfone, em especial se isso acontece habitualmente, o poeta estabelece uma nova relação com sua obra.” [...]
[...] “Essa coisa apavorante, a “leitura de poesia”, é o que é porque sempre haverá pessoas na plateia que ficarão entediadas ou quase francamente hostis e que não podem se retirar pelo simples ato de girar o dial. E, no fundo, é a mesma dificuldade — o fato de que uma plateia de teatro não é selecionada — que torna impossível uma apresentação decente de Shakespeare na Inglaterra. No rádio, essas condições não existem. O poeta sente que está falando com pessoas para as quais a poesia significa alguma coisa, e é um fato que os poetas acostumados ao rádio podem ler ao microfone com um virtuosismo que não teriam se tivessem uma plateia visível diante deles. Não tem muita importância o elemento de faz de conta que entra nisso. A questão é que, na única maneira possível agora, o poeta foi posto numa situação em que ler versos em voz alta parece uma coisa natural e não embaraçosa, um intercâmbio normal entre homem e homem; também foi levado a pensar em sua obra como som, em vez de texto sobre papel. Com isso, a conciliação entre poesia e homem comum está mais próxima.” [...]
[...] “O rádio é o que é não porque exista algo inerentemente vulgar, imbecil ou desonesto em todo o aparato de microfones e transmissores, mas porque todas as transmissões de rádio atuais em todo o mundo estão sob o controle dos governos ou de grandes companhias monopolistas que têm interesse ativo em manter a condição reinante e, portanto, em impedir que o homem comum fique muito inteligente.” [...]
[...] “Significa que em países onde já existe uma tradição liberal forte, a tirania burocrática talvez nunca chegue a ser completa. Os homens de calças listradas mandarão, mas, enquanto forem forçados a manter uma intelligentsia, esta terá certo grau de autonomia. Se o governo precisa, por exemplo, de documentários, tem de empregar gente interessada em técnica de cinema e precisa lhes dar o mínimo necessário de liberdade; em consequência, filmes completamente errados do ponto de vista burocrático terão sempre tendência a aparecer. O mesmo com a pintura, fotografia, redação de textos, reportagem, palestras e todas as outras artes e semiartes das quais um Estado moderno complexo precisa.”
Propaganda e discurso popular (Propaganda and demotic speech)
[...] “quando se examinam os folhetos e os informes oficiais do governo, ou os principais artigos dos jornais, ou os discursos e falas de políticos pelo rádio, ou os panfletos e manifestos de qualquer partido político, a coisa que quase sempre chama atenção é a distância que mostram do homem comum. Não se trata apenas de que pressuponham um conhecimento inexistente: com frequência, é certo e necessário fazer isso. Acontece também que a linguagem cotidiana, popular, parece ser instintivamente evitada. O dialeto exangue dos porta-vozes do governo (são expressões características: no devido tempo, tentar todos os meios, aproveitar a primeira oportunidade, a resposta é afirmativa) é demasiado conhecido para valer a pena examinar. Os editoriais de jornais são escritos no mesmo dialeto ou num estilo inflado e bombástico, com uma tendência a recorrer a palavras arcaicas. [...] que nenhuma pessoa normal jamais pensaria em usar.” [...]
[...]
“Eu já disse que o inglês falado e o escrito são duas coisas diferentes. Essa variação existe em todos os idiomas, mas provavelmente é maior no inglês do que na maioria deles. O inglês falado está cheio de gírias, é abreviado sempre que possível e as pessoas de todas as classes sociais tratam a gramática e a sintaxe de forma desleixada. Um número extremamente pequeno de ingleses fecha a frase se está falando de improviso. Sobretudo, o vasto vocabulário inglês contém milhares de palavras que todo mundo usa quando escreve, mas que não têm verdadeira vigência na fala; e contém também outras tantas realmente obsoletas, mas que são ressuscitadas por quem quer parecer inteligente ou edificante. Se não esquecermos disso, podemos pensar em modos de fazer que a propaganda, falada ou escrita, possa atingir o público ao qual se destina.”
[...] “A ideia toda de tentar descobrir o que o homem médio pensa, em vez de pressupor que ele pensa o que deveria pensar, é nova e mal recebida. As pesquisas sociais são atacadas violentamente tanto pela direita como pela esquerda. No entanto, algum mecanismo para testar a opinião pública é uma necessidade óbvia do governo moderno, e mais ainda num país democrático do que num totalitário. Seu complemento é a capacidade de falar para o homem comum em palavras que ele compreenda e reaja a elas.”
[...] “O fato de que quando se sugere descobrir como é o homem comum, e abordá-lo de forma apropriada, logo se é acusado de ser um esnobe intelectual que quer “falar” para as massas, ou então se é suspeito de tramar a criação de uma Gestapo inglesa, mostra como nossa noção de democracia continua a ser mesma do século XIX.”
A política e a língua inglesa (Politics and the English language)
[...] “Nossa civilização está em decadência e nossa língua — assim reza o argumento — deve participar inevitavelmente do colapso geral. Por conseguinte, qualquer luta contra o insulto à língua é um arcaísmo sentimental, como preferir velas à luz elétrica ou fiacres a aviões. Por trás disso está a crença semiconsciente de que a língua é um produto natural e não um instrumento que moldamos para nossos propósitos.”
[...]
“Cada um desses trechos tem defeitos próprios, mas longe da feiura evitável, duas características são comuns a todos. A primeira é o ranço das imagens; a outra, a falta de precisão. O escritor ou tem um significado e não consegue expressá-lo, ou inadvertidamente diz outra coisa, ou é quase indiferente quanto a suas palavras significarem alguma coisa ou não. Essa mistura de imprecisão e pura incompetência é a característica mais marcante da prosa inglesa moderna e, em especial, de qualquer tipo de escrito político. Assim que certos temas são levantados, o concreto se funde no abstrato e ninguém parece capaz de pensar em formas de elocução que não sejam banais; a prosa consiste cada vez menos em palavras e mais em expressões coladas umas às outras como as seções de um galinheiro pré-fabricado.” [...]
[...] “Toda a tendência da prosa moderna é se afastar da concretude.” [...]
“Como tentei mostrar, a escrita moderna, em seu pior aspecto, não consiste em escolher palavras por seu sentido e inventar imagens para tornar o sentido mais claro. Consiste em colar longas tiras de palavras que já foram postas em ordem por outra pessoa e tornar os resultados apresentáveis por pura mistificação. A atração desse tipo de texto está em sua facilidade. É mais fácil — e até mais rápido, uma vez adquirido o hábito — dizer em minha opinião, não é uma suposição injustificável do que dizer penso que.” [...] “Ao usar metáforas, símiles e expressões idiomáticas cediças, economiza-se muito esforço mental, ao custo de deixar o sentido vago, não somente para o leitor, mas para o próprio autor. Esse é o significado das metáforas misturadas. O único objetivo de uma metáfora é evocar uma imagem visual.” [...]
[...] “Um escritor escrupuloso, em cada frase que escreve, fará a si mesmo ao menos quatro perguntas: o que estou tentando dizer? Que palavras o expressarão? Que imagem ou expressão idiomática o deixará mais claro? Essa imagem é estimulante o bastante para causar um efeito? E fará provavelmente outras duas perguntas para si mesmo: posso dizer isso de maneira mais curta? Eu disse alguma coisa de uma feiura evitável? Mas você não é obrigado a passar por tudo isso. Para evitá-lo, basta abrir sua cabeça e deixar que as expressões prontas a preencham. Elas construirão as frases para você — de certa maneira, pensarão por você — e quando necessário, executarão o importante serviço de esconder parcialmente seu sentido até de você mesmo. É nesse ponto que a conexão especial entre a política e a degradação da língua fica clara.”
“Em nosso tempo, o discurso e a escrita política são, em grande medida, a defesa do indefensável. Podem-se defender coisas como a continuação do domínio britânico na Índia, os expurgos e as deportações russas, as bombas atômicas jogadas sobre o Japão, mas somente com argumentos que são brutais demais para a maioria das pessoas e que não estão de acordo com os objetivos declarados dos partidos políticos. Desse modo, a linguagem política precisa consistir, em larga medida, em eufemismos, argumentos circulares e pura imprecisão nebulosa. Aldeias indefesas são bombardeadas por aviões, os habitantes são expulsos para o campo, o gado é metralhado, as cabanas incendiadas por bombas incendiárias: isso se chama pacificação. Milhões de camponeses têm suas fazendas roubadas e são mandados para a estrada com não mais do que aquilo que podem carregar consigo: isso se chama transferência da população ou retificação de fronteiras. Pessoas ficam presas durante anos, sem julgamento, ou são fuziladas na nuca, ou são mandadas para morrer de escorbuto em acampamentos de lenhadores no Ártico: isso se chama eliminação de elementos não confiáveis. Essa fraseologia é necessária se quisermos nomear coisas sem evocar imagens mentais delas.” [...]
[...] “A insinceridade é a grande inimiga da linguagem clara. Quando há um abismo entre nossos objetivos declarados e os reais, quase instintivamente apelamos para palavras longas e expressões gastas, como uma sépia que esguicha tinta. Em nossa época, não existe algo como “ficar fora da política”. Todas as questões são políticas e a própria política é uma massa de mentiras, evasivas, loucura, ódio e esquizofrenia. Quando a atmosfera geral é ruim, a linguagem sofre.” [...]
[...] “O que precisamos, sobretudo, é deixar que o sentido escolha a palavra, e não o contrário. Na prosa, a pior coisa que podemos fazer com as palavras é render se a elas. Quando pensamos em um objeto concreto, pensamos sem palavras e depois, se quisermos descrevê-lo, provavelmente saímos em busca das palavras exatas que pareçam dar conta do recado. Quando pensamos em algo abstrato, estamos mais inclinados a usar palavras desde o início, e se não fizermos um esforço consciente para evitá-lo, o dialeto existente virá correndo e fará o serviço por nós, à custa de ofuscar ou mesmo mudar nosso sentido.” [...]
3 | A covardia intelectual é o pior inimigo
Semanários para meninos (Boys’s weeklies)
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“É provável que o conteúdo dessas lojas seja a melhor indicação disponível do que a massa do povo inglês realmente sente e pensa. Não existe nada tão revelador em forma de documentário. Os romances best-sellers, por exemplo, nos contam muito, mas o alvo dos romances é composto quase exclusivamente de pessoas acima do nível de quatro libras por semana. O cinema é provavelmente um guia muito incerto para o gosto popular, porque a indústria cinematográfica é quase um monopólio, o que significa que não está obrigada a estudar seu público de forma mais detalhada. O mesmo vale, em certa medida, para os jornais diários e, sobretudo, para o rádio. Mas não se aplica ao jornal semanal com uma circulação pequena e um tema especializado. Jornais como o Exchange and Mart, por exemplo, ou Cage-Birds, ou o Oracle, ou Prediction, ou Matrimonial Times só existem porque há uma demanda específica por eles, e essas publicações refletem a mente de seus leitores de uma forma que um grande diário nacional com circulação demilhões não pode refletir.”
[...] “as histórias de escolas são algo peculiar da Inglaterra. Até onde sei, há pouquíssimas histórias desse tipo em outras línguas. O motivo, obviamente, é que na Inglaterra a educação é sobretudo uma questão de posição social. A linha divisória mais definida entre a pequena burguesia e a classe trabalhadora é que a primeira paga por sua educação; e dentro da burguesia há outro abismo intransponível entre a escola “de elite”, a de custo mais alto, e a “particular”. Está bastante claro que há milhares de pessoas para quem cada detalhe da vida numa escola de elite é extremamente emocionante e romântico. Acontece que elas estão fora desse mundo místico de pátios e cores das residências estudantis, mas anseiam por ele, sonham acordada com ele, vivem mentalmente nele por horas a fio. A questão é: quem são essas pessoas?” [...]
[...] “A crise de guerra de setembro de 1938 causou impressão suficiente para produzir uma história em que o sr. Vernon-Smith, o pai milionário do Mal-educado, aproveitou o pânico geral para comprar casas de campo a fim de vendê-las aos “fugitivos da crise”. Mas isso é provavelmente o máximo que Gem e Magnet chegarão perto de noticiar a situação europeia, até que a guerra comece de fato. Isso não significa que sejam antipatrióticos — muito ao contrário! Durante toda a Grande Guerra, Gem e Magnet foram talvez os mais coerentes e alegremente patriotas dos jornais da Inglaterra. Quase todas as semanas os meninos capturavam um espião ou empurravam um refratário para o Exército, e no período de racionamento todas as páginas traziam impresso em letras grandes “COMA MENOS PÃO”. Mas o patriotismo deles não tem nada a ver com a política do poder ou a guerra “ideológica”. Está mais para lealdade familiar e, na verdade, nos dá uma valiosa chave para entender a atitude das pessoas comuns, em especial do imenso bloco intocado da classe média e da classe operária mais bem de vida. Essas pessoas são patrióticas até os ossos, mas não acham que aquilo que acontece nos países estrangeiros é da sua conta. Quando a Inglaterra está em perigo, eles acorrem em sua defesa como coisa natural, mas não estão interessados nos intervalos. Afinal, a Inglaterra sempre tem razão e a Inglaterra sempre vence, então por que se preocupar? Trata-se de uma atitude que foi abalada nos últimos vinte anos, mas não tão profundamente como às vezes se supõe. O fato de não compreender isso é um dos motivos de os partidos de esquerda raramente serem capazes de produzir uma política externa aceitável.”
[...] “Não há nada parecido com isso em nenhuma publicação inglesa que tenha probabilidade de ser lida por meninos. Mas o processo de americanização continua assim mesmo. O ideal americano, o “machão”, o “durão”, o gorila que acerta tudo dando socos no queixo de todo mundo figura agora provavelmente na maioria das publicações para meninos.” [...]
A liberdade do parque (Freedom of the park)
[...]
“O grau de liberdade de imprensa existente neste país é com frequência superestimado. Tecnicamente, há uma grande liberdade, mas o fato é que a maior parte da imprensa é de propriedade de algumas pessoas que agem de forma muito parecida com a de uma censura estatal. Por outro lado, a liberdade de manifestação oral é verdadeira. No palanque ou em certos espaços ao ar livre reconhecidos, como o Hyde Park, pode-se dizer quase tudo; e o mais significativo talvez seja que ninguém tem medo de manifestar suas verdadeiras opiniões em pubs, em cima de ônibus, e assim por diante.
O problema é que a relativa liberdade de que desfrutamos depende da opinião pública. A lei não é nenhuma proteção. Os governos fazem as leis, mas se são executadas, e como a polícia se comporta, tudo isso depende do humor geral do país. Se um grande número de pessoas estiver interessado na liberdade de manifestação oral, haverá liberdade de manifestação oral, mesmo que a lei a proíba; se a opinião pública for apática, minorias inconvenientes serão perseguidas, ainda que existam leis para protegê-las. O declínio do desejo de liberdade intelectual não foi tão agudo quanto eu teria previsto há seis anos, quando a guerra estava começando, mas mesmo assim houve um declínio. A noção de que não se pode permitir a manifestação de certas opiniões está crescendo. É moeda corrente entre intelectuais que confundem a questão ao não distinguir entre oposição democrática e rebelião aberta, e se reflete em nossa crescente indiferença à tirania e à injustiça no resto do mundo. E até mesmo os que se declaram favoráveis à liberdade de opinião geralmente ficam quietos quando são seus adversários que estão sendo perseguidos.”
A prevenção contra a literatura (The prevention of literature)
[...] “A liberdade moral — a liberdade de discutir questões sexuais com franqueza em textos impressos — parecia contar com a aprovação geral, mas a liberdade política não foi mencionada. Naquela reunião de várias centenas de pessoas, das quais talvez metade estivesse diretamente ligada à atividade da escrita, não houve uma única capaz de dizer que a liberdade de imprensa, se é que significa alguma coisa, significa a liberdade de criticar e se opor.” [...]
[...] “Em nossa época, a ideia de liberdade intelectual está sob ataque de duas direções. De um lado estão seus inimigos teóricos, os apologistas do totalitarismo, e, do outro, seus inimigos práticos imediatos, o monopólio e a burocracia. Qualquer escritor ou jornalista que deseje manter sua integridade se vê mais contrariado pelo curso geral da sociedade do que por perseguição ativa. Os tipos de coisas que trabalham contra ele são a concentração da imprensa nas mãos de alguns homens ricos, o controle do monopólio sobre o rádio e o cinema, a falta de disposição do público para gastar dinheiro em livros, fazendo que quase todos os escritores tenham de ganhar parte de seu sustento como assalariados ou escrevendo por encomenda, a intrusão de órgãos oficiais, como o Ministério da Informação e o Conselho Britânico, que ajudam o escritor a se manter vivo, mas também desperdiçam seu tempo e ditam suas opiniões, e a contínua atmosfera de guerra dos últimos dez anos, de cujos efeitos deformadores ninguém conseguiu escapar. Tudo em nossa época conspira para transformar o escritor, assim como todos os outros tipos de artistas, num funcionário menor que trabalha sobre temas que lhe são passados de cima e ao qual nunca contam toda a verdade. Mas, na luta contra esse destino, ele não recebe ajuda de seu próprio lado, ou seja, não existe um grande corpo de opinião que lhe garanta que ele tem razão.” [...]
“A liberdade de pensamento e de imprensa é geralmente atacada com argumentos com os quais não vale a pena se preocupar. Quem tem experiência em palestras e debates os conhece de cor. Aqui, não estou tentando tratar da alegação familiar de que a liberdade é uma ilusão, ou da afirmação de que existe mais liberdade em países totalitários que nos democráticos, mas da proposição muito mais defensável e perigosa de que a liberdade é indesejável e que a honestidade intelectual é uma forma de egoísmo antissocial. Embora outros aspectos da questão costumem ocupar o primeiro plano, a controvérsia sobre a liberdade de expressão e de imprensa é, no fundo, uma controvérsia sobre a desejabilidade ou não de contar mentiras. O que está de fato em questão é o direito de narrar os eventos contemporâneos honestamente, ou tão honestamente quanto é compatível com a ignorância, o preconceito e o autoengano de que todo observador necessariamente sofre.” [...]
“Os inimigos da liberdade intelectual sempre tentam apresentar sua defesa em termos de um apelo à disciplina, contra o individualismo. A questão verdade versus inverdade é, na medida do possível, mantida afastada. Embora o ponto de ênfase possa variar, o escritor que se recusa a vender suas opiniões é sempre rotulado de mero egoísta. Ele é acusado de querer se trancar numa torre de marfim, ou de fazer um alarde exibicionista de sua personalidade, ou de resistir à corrente inevitável da história, numa tentativa de se agarrar a privilégios injustificáveis. O católico e o comunista são parecidos na presunção de que um oponente não pode ser honesto e inteligente. Ambos alegam tacitamente que a “verdade” já foi revelada e que o herege, se não é um simples idiota, no íntimo está consciente da “verdade” e apenas resiste a ela por motivos egoístas.” [...]
[...] “O argumento de que contar a verdade seria “inoportuno”, ou “favorecer o jogo” de alguém, é considerado irrespondível, e poucos se importam com a perspectiva de que as mentiras que toleram sairão dos jornais e entrarão nos livros de história.
A mentira organizada praticada pelos Estados totalitários não é, como se alega às vezes, um expediente temporário da mesma natureza que o ardil militar. Trata-se de algo inerente ao totalitarismo, que continuaria mesmo que os campos de concentração e as forças da polícia secreta deixassem de ser necessários. Entre os comunistas inteligentes corre uma lenda clandestina segundo a qual, embora seja obrigado agora a fazer propaganda mentirosa, julgamentos forjados e assim por diante, o governo russo está registrando em segredo os fatos verdadeiros e os publicará em algum momento no futuro. Creio que podemos ter certeza de que esse não é o caso, porque a mentalidade implícita numa ação desse tipo é a do historiador liberal que acredita que o passado não pode ser alterado e que um conhecimento correto da história é naturalmente valioso. Do ponto de vista totalitário, a história é algo a ser criado, em vez de aprendido. Um Estado totalitário é, na realidade, uma teocracia, e sua casta dominante, para manter sua posição, deve ser considerada infalível. Mas como na prática ninguém é infalível, muitas vezes é necessário rearranjar os eventos do passado a fim de mostrar que este ou aquele erro não foi cometido, ou que este ou aquele triunfo imaginário aconteceu de fato. Daí que cada mudança importante na política exige uma mudança correspondente de doutrina e uma reavaliação de figuras históricas de proa. Esse tipo de coisa acontece em todos os lugares, mas é mais provável que leve a falsificações completas em sociedades nas quais se permite somente uma opinião a qualquer momento. O totalitarismo exige, na realidade, a alteração contínua do passado, e a longo prazo requer provavelmente uma descrença na própria existência da verdade objetiva. Os simpatizantes do totalitarismo em nosso país tendem a argumentar que, uma vez que a verdade absoluta é inatingível, uma grande mentira não é pior do que uma pequena. Afirma-se que todos os registros históricos são tendenciosos e inexatos, ou, por outro lado, que a física moderna provou que aquilo que parece ser o mundo real é uma ilusão, de tal modo que acreditar nas provas de nossos sentidos não passa de filisteísmo vulgar. Uma sociedade totalitária que conseguisse se perpetuar provavelmente estabeleceria um sistema de pensamento esquizofrênico no qual as leis do senso comum seriam consideradas boas na vida cotidiana e em certas ciências exatas, mas poderiam ser desconsideradas pelo político, pelo historiador e pelo sociólogo. Já existem muitas pessoas que considerariam escandaloso falsificar um manual científico, mas não veriam nada de errado na falsificação de um fato histórico. É nesse ponto em que literatura e política se cruzam que o totalitarismo exerce sua maior pressão sobre o intelectual. Até agora as ciências exatas não estão ameaçadas por nada parecido. Isso explica por que em todos os países é mais fácil para os cientistas do que para os escritores se alinhar com seus respectivos governos.”
[...] “a literatura é uma tentativa de influenciar o ponto de vista de seus contemporâneos pela narração da experiência. E no que tange à liberdade de expressão, não há muita diferença entre um mero jornalista e o mais apolítico escritor de ficção. O jornalista não é livre, e tem consciência disso quando é forçado a escrever mentiras ou suprimir o que lhe parece uma notícia importante; o escritor de ficção não é livre quando tem de falsificar seus sentimentos subjetivos, que do seu ponto de vista são fatos. Ele pode deformar e fazer caricatura da realidade a fim de tornar seu sentido mais claro, mas não pode falsear o cenário de sua mente: não pode dizer com convicção que gosta do que odeia, ou acredita no que não crê. Se é forçado a fazer isso, o único resultado é que suas faculdades criativas secam. Tampouco pode resolver o problema mantendo-se distante de temas controversos. Não existe literatura não política de verdade, muito menos numa época como a nossa, em que temores, ódios e lealdades de um tipo diretamente político estão próximos da superfície da consciência de todos. Até mesmo um único tabu pode causar um efeito totalmente paralisante na mente, porque há sempre o perigo de que qualquer pensamento seguido com liberdade possa levar à ideia proibida. Em consequência, a atmosfera do totalitarismo é mortal para qualquer tipo de prosador, embora um poeta, ao menos um poeta lírico, possa talvez julgá-lo respirável. E em qualquer sociedade totalitária que sobreviva por mais de duas gerações, é provável que a literatura de prosa, do tipo que existiu nos últimos quatrocentos anos, chegue ao fim.”
[...] “Ora, é fácil para um político fazer essas mudanças; para um escritor, o caso é um pouco diferente. Se quiser trocar de lealdade exatamente no momento certo, ele precisa mentir sobre seus sentimentos ou suprimi-los por completo. Em ambos os casos, ele destrói seu dínamo. Não somente as ideias se recusarão a vir ao seu encontro, como as próprias palavras que usa parecerão enrijecer-se ao seu toque. Os escritos políticos de nosso tempo consistem quase totalmente em frases pré-fabricadas aparafusadas umas às outras como peças de um brinquedo de metal para montar. É o resultado inevitável da autocensura. Para escrever com uma linguagem simples e vigorosa, é preciso pensar sem medo, e se pensamos sem medo, não podemos ser politicamente ortodoxos.” [...]
[...] “A literatura de prosa tal como a conhecemos é produto do racionalismo, dos séculos protestantes, do indivíduo autônomo. E a destruição da liberdade intelectual mutila o jornalista, o sociólogo, o historiador, o romancista, o crítico e o poeta, nessa ordem decrescente.” [...]
[...]
“Por enquanto, o triunfo do totalitarismo não é total no mundo inteiro. Nossa própria sociedade ainda é, em termos gerais, liberal. Para exercer seu direito de livre manifestação, você tem de lutar contra a pressão econômica e contra setores fortes da opinião pública, mas não — ainda — contra uma polícia secreta. Você pode dizer ou imprimir quase tudo, desde que esteja disposto a fazê-lo de maneira meio clandestina. Mas o sinistro, como eu disse no início deste ensaio, é que os inimigos conscientes da liberdade são aqueles para quem a liberdade deveria significar o máximo. O grande público, de uma maneira ou de outra, não se importa com isso. Ele não é a favor de perseguir o herege, mas não vai se empenhar em defendê-lo. Ele é ao mesmo tempo sensato demais e estúpido demais para assumir uma perspectiva totalitária. O ataque direto, consciente, à decência intelectual vem dos próprios intelectuais.”
[...] “Pelo menos alguns dos cientistas que falam com entusiasmo das oportunidades desfrutadas pelos cientistas na Rússia são capazes de compreender isso. Mas a reflexão deles parece ser: “Escritores são perseguidos na Rússia. E daí? Eu não sou escritor”. Eles não percebem que um ataque à liberdade intelectual e ao conceito de verdade objetiva ameaça a longo prazo todos os ramos do pensamento.”
“[...] o Estado totalitário tolera o cientista porque precisa dele.” [...] “No nosso estágio da história, até o governante mais autocrático é forçado a levar em conta a realidade física, em parte devido à sobrevivência de hábitos liberais de pensamento, em parte pela necessidade de se preparar para a guerra. Enquanto a realidade física não puder ser totalmente ignorada, enquanto dois mais dois forem quatro quando alguém está, por exemplo, fazendo o projeto de um avião, o cientista tem sua função e pode até gozar de um pouco de liberdade. Seu despertar virá mais tarde, quando o Estado totalitário estiver firmemente estabelecido. Enquanto isso, se ele quiser salvaguardar a integridade da ciência, é seu dever desenvolver algum tipo de solidariedade com seus colegas literários e não ficar indiferente quando escritores são silenciados ou levados ao suicídio e os jornais são sistematicamente falsificados.”
[...] “uma mente comprada é uma mente podre. Se a espontaneidade não entrar em um ou outro momento, a criação literária é impossível e a linguagem se torna ossificada. Em algum momento do futuro, se a mente humana se transformar em algo totalmente distinto do que é agora, talvez aprendamos a separar a criação literária da honestidade intelectual. No momento, sabemos apenas que a imaginação, como certos animais selvagens, não se reproduz em cativeiro. O jornalista ou escritor que negar esse fato — e quase todo elogio atual à União Soviética contém ou implica essa negação — está, na realidade, pedindo sua própria destruição.”
A liberdade de imprensa (The freedom of the press — prefácio para A revolução dos bichos)
[...] “o principal perigo para a liberdade de pensamento e de expressão neste momento não é a interferência direta do MI ou de qualquer órgão oficial. Se editoras e editores se empenham em impedir que certos temas sejam publicados, não é porque temem ser processados, mas porque temem a opinião pública. Neste país, a covardia intelectual é o pior inimigo que um escritor ou jornalista tem de encarar [...].”
[...] “Em qualquer momento dado, há uma ortodoxia, um corpo de ideias que se supõe que todas as pessoas bem pensantes aceitarão sem questionar. Não é exatamente proibido dizer isso ou aquilo, mas é “impróprio” dizê-lo [...]. Quem desafia a ortodoxia dominante se vê silenciado com surpreendente eficácia. Uma opinião genuinamente fora de moda quase nunca recebe uma atenção justa, seja na imprensa popular ou nos ditos periódicos cultos.
[...]
“Durante todo esse tempo, as críticas da esquerda ao regime soviético só conseguiam ser ouvidas com grande dificuldade. Havia uma grande produção de literatura antirrussa, mas quase toda ela vinha de um ângulo conservador e claramente desonesto, antiquado e movido por motivos sórdidos. Do outro lado, havia um fluxo igualmente enorme e quase igualmente desonesto de propaganda pró-russa, o que equivalia a um boicote a quem tentasse discutir questões importantes de uma maneira madura. Era possível publicar livros antirrussos, mas fazê-lo era ter certeza de ser ignorado ou mal interpretado por quase toda a imprensa “culta”. Tanto em público como em particular, o autor era advertido de que aquilo era “inconveniente”. O que ele dizia talvez fosse verdade, mas era “inoportuno” e poderia “favorecer o jogo” desse ou daquele interesse reacionário. Essa atitude era defendida com o argumento de que a situação internacional e a necessidade urgente de uma aliança anglorussa exigiam isso; mas estava claro que se tratava de uma racionalização.” [...]
(A semelhança com o Brasil é notável. Não se pode criticar a esquerda ou a direita liberal, pois logo surgem pessoas argumentando que isso elegerá Bolsonaro novamente. Afinal, é necessário ignorar seu senso crítico e aceitar qualquer bobagem (ou pior, opiniões completamente contrárias às suas) em busca de "um bem maior".)
[...]
“A questão envolvida aqui é bastante simples: todas as opiniões, por mais impopulares — por mais insensatas até —, têm direito a ser ouvidas? Diga isso dessa maneira e quase todos os intelectuais ingleses acharão que devem dizer “sim”. Mas dê uma forma concreta à questão e pergunte: “Que tal um ataque a Stálin? Isso tem direito a ser ouvido?”, e a resposta mais frequente será “não”. Nesse caso, a ortodoxia atual é contestada e o princípio da liberdade de manifestação desaparece. Ora, quando exigimos liberdade de expressão e de imprensa, não estamos exigindo liberdade absoluta. Sempre deve haver, ou ao menos sempre haverá, algum grau de censura enquanto as sociedades organizadas perdurarem. Mas a liberdade, como disse Rosa Luxemburgo, é “liberdade para o outro companheiro”. O mesmo princípio está contido nas palavras famosas de Voltaire: “Detesto o que dizeis; defenderei até a morte vosso direito de dizê-las”. Se a liberdade intelectual, que, sem dúvida, tem sido uma das marcas características da civilização ocidental, significa alguma coisa, é que todos devem ter o direito de dizer e imprimir o que acreditam ser a verdade, desde que isso não cause dano ao resto da comunidade de uma forma bastante inequívoca.”
[...]
“Um dos fenômenos peculiares de nosso tempo é o liberal renegado. Além da afirmação marxista familiar de que a “liberdade burguesa” é uma ilusão, há agora uma tendência difusa a sustentar que só se pode defender a democracia com métodos totalitários. Se amamos a democracia, diz o argumento, então devemos esmagar seus inimigos de qualquer maneira. E quem são seus inimigos? Parece sempre que eles não são apenas aqueles que a atacam de forma aberta e consciente, mas os que “objetivamente” a põem em perigo ao difundir doutrinas erradas. Em outras palavras, defender a democracia implica destruir toda a independência de pensamento.” [...]
“Essas pessoas não percebem que, se incentivam os métodos totalitários, chegará o momento em que estes serão usados contra elas, e não a seu favor. Transforme em hábito prender fascistas sem julgamento e talvez o processo não se detenha nos fascistas.” [...]
4 | “Pacifismo” é uma palavra vaga
A vingança é amarga (Revenge is sour)
[...]
“É absurdo culpar qualquer judeu alemão ou austríaco por dar o troco aos nazistas. Sabe Deus que contas aquele homem em particular tinha a acertar: é bem provável que toda a sua família tenha sido assassinada; e, afinal, até um chute brutal em um prisioneiro é uma coisa minúscula em comparação com as atrocidades cometidas pelo regime de Hitler. Mas o que aquela cena e muitas outras coisas que vi na Alemanha deixaram claro para mim é que a ideia toda de vingança e punição é uma ilusão infantil. Para ser exato, não existe vingança. A vingança é um ato que se quer cometer quando se está impotente e porque se está impotente; assim que o sentimento de impotência desaparece, o desejo se evapora também.”
[...] “a punição desses monstros deixa de parecer atraente quando se torna possível: com efeito, depois de encarcerados eles quase cessam de ser monstros.”
5 | É melhor cozinhar batatas do que fritá-las
“Tamanhas eram as alegrias” (“Such, such were the joys”)
[...] “Uma criança pode ser uma massa de egoísmo e rebeldia, mas não tem experiência acumulada para lhe fazer confiar no próprio bom senso. Em geral aceitará o que é dito e acreditará, do modo mais fantástico, no conhecimento e nos poderes dos adultos que a rodeiam.” [...]
[...] “Estava claro, portanto, que eu tinha uma enorme dívida de gratidão com eles. Mas eu não estava agradecido, como sabia muito bem. Ao contrário, eu odiava os dois. Eu não conseguia controlar meus sentimentos subjetivos e não conseguia escondê-los de mim mesmo. Mas é perverso odiar seus benfeitores, não é? Assim me ensinaram, e assim eu acreditava. A criança aceita os códigos de comportamento que lhe apresentam, mesmo quando os infringe. A partir dos oito anos, ou até antes, a consciência do pecado nunca esteve muito longe de mim. Se eu conseguia parecer insensível e desafiador, isso era apenas uma casca fina sobre uma massa de vergonha e consternação. Durante toda a minha infância, tive a profunda convicção de que eu não era bom, que estava perdendo meu tempo, desperdiçando meus talentos, comportando-me com loucura monstruosa, perversidade e ingratidão — e tudo isso parecia inevitável, porque eu vivia entre leis que eram absolutas, como a lei da gravidade, mas que eu não conseguia cumprir.”
[...] “Não expor os verdadeiros sentimentos aos adultos parece ser uma coisa instintiva a partir dos sete ou oito anos de idade. Até mesmo a afeição que sentimos por uma criança, o desejo de protegê-la e amá-la, é causa de mal-entendidos. Talvez possamos amar uma criança mais do que outro adulto, mas é temerário supor que a criança sente algum amor em troca. Olhando em retrospecto para minha infância, depois dos anos de bebê, não creio que jamais tenha sentido amor por uma pessoa madura, exceto minha mãe, e mesmo nela eu não confiava, no sentido de que a timidez me fazia esconder a maior parte de meus verdadeiros sentimentos por ela. O amor, a emoção espontânea, irrestrita do amor era algo que eu só podia sentir por pessoas que fossem jovens. Em relação às pessoas velhas — e não esqueçam que “velho” para uma criança significa mais de trinta, ou até mais de 25 —, eu era capaz de sentir reverência, respeito, admiração ou remorso, mas parecia estar separado delas por um véu de medo e timidez misturado com aversão física.” [...]
[...] “A fraqueza da criança é que ela começa com uma folha em branco. Ela não compreende nem questiona a sociedade em que vive, e devido a sua credulidade, outras pessoas podem trabalhar em cima dela, contagiando-a com o sentimento de inferioridade e o temor de infringir leis terríveis e misteriosas.” [...]
Inglaterra, nossa Inglaterra (England your England)
[...] “tudo isso não são apenas fragmentos, mas fragmentos característicos da cena inglesa. Como estabelecer um padrão a partir dessa confusão? Mas ao falar com estrangeiros, ler livros ou jornais estrangeiros, somos trazidos de volta ao mesmo pensamento. Sim, há algo típico e reconhecível na civilização inglesa. É uma cultura tão peculiar como a da Espanha. Está amarrada de algum modo a desjejuns sólidos e domingos sombrios, cidades enfumaçadas e estradas sinuosas, campos verdes e caixas de correio vermelhas. Tem um sabor próprio. Além disso, é contínua, estende-se para o futuro e o passado, há algo nela que persiste, como uma criatura viva.” [...]
(Há coisas peculiares em todas as culturas, inclusive na brasileira que é reconhecidamente miscigenada.)
“E, sobretudo, é nossa civilização, somos nós. Por mais que a odiemos ou rimos dela, jamais seremos felizes longe dela por qualquer período de tempo.” [...]
[...]
“Características nacionais não são fáceis de definir, e quando definidas, muitas vezes se revelam trivialidades ou parecem não ter relação umas com as outras.” [...]
[...]
“E até a distinção entre ricos e pobres diminui um pouco se olhamos a nação de fora. Não há dúvida sobre a desigualdade da renda na Inglaterra. É mais gritante do que em qualquer país europeu, e basta olhar a rua mais próxima para vê-la. Do ponto de vista econômico, a Inglaterra é certamente duas nações, senão três ou quatro. Mas, ao mesmo tempo, a vasta maioria das pessoas sente ser uma única nação, e estão convictas de que se parecem mais umas com as outras do que com estrangeiros. O patriotismo costuma ser mais forte do que o ódio de classe, e sempre mais forte do que qualquer tipo de internacionalismo.” [...]
[...]
“O fato subjacente era que toda a posição da classe endinheirada deixará de ser justificável havia muito tempo. Lá estavam eles, no centro de um vasto império e de uma rede financeira mundial, auferindo juros e lucros e os gastando — em quê? É justo dizer que a vida dentro do Império Britânico era, sob muitos aspectos, melhor que fora dele. Ainda assim, o império era subdesenvolvido, a Índia dormia na Idade Média, as possessões jaziam vazias, com a entrada dos estrangeiros ciumentamente barrada, e até a Inglaterra estava cheia de cortiços e desemprego. Somente meio milhão de pessoas, a gente das casas de campo, sem dúvida se beneficiava do sistema existente. Ademais, a tendência dos pequenos negócios de se fundir em grandes tirava cada vez mais da classe endinheirada sua função e a transformava em meros donos, enquanto seu trabalho era feito por gerentes e técnicos assalariados. Há muito tempo existe na Inglaterra uma classe totalmente sem função, que vive do dinheiro investido em algum lugar que ela mal conhece, os “ricos ociosos”, a gente cuja fotografia podemos ver na Tatler e na Bystander, sempre supondo que as queremos ver. A existência dessa gente era, por qualquer padrão, injustificável. Eles eram simples parasitas, menos úteis para a sociedade que as pulgas para um cão.”
[...]
“A Inglaterra é um país em que propriedade e poder financeiro estão concentrados em pouquíssimas mãos. Na Inglaterra de hoje, poucos possuem alguma coisa que não seja roupas, móveis e possivelmente uma casa. O campesinato desapareceu há muito tempo, o lojista independente está sendo destruído, o número de pequenos empresários está diminuindo. Mas ao mesmo tempo a indústria moderna é tão complicada que não pode existir sem um grande número de gerentes, vendedores, engenheiros, químicos e técnicos de todos os tipos, que ganham salários razoavelmente grandes. E esses, por sua vez, dão vida a uma classe profissional de médicos, advogados, professores, artistas etc. etc. A tendência do capitalismo avançado tem sido, portanto, de aumentar a classe média, em vez de acabar com ela, como outrora parecia provável.
Porém muito mais importante do que isso é a difusão das ideias e dos hábitos da classe média entre a classe operária. A classe trabalhadora inglesa está agora em melhor situação em quase todos os aspectos do que há trinta anos. Isso se deve, em parte, aos esforços dos sindicatos, mas também ao mero avanço da ciência física. Nem sempre nos damos conta de que, dentro de limites estreitos, o padrão de vida de um país pode subir sem um aumento correspondente dos salários reais. Até certo ponto, a civilização pode se elevar puxando-se pela alça de suas botas. Por mais injusta que seja a organização da sociedade, certos progressos técnicos estão destinados a beneficiar toda a comunidade porque certos tipos de bens são necessariamente possuídos em comum. Um milionário, por exemplo, não pode iluminar as ruas para ele mesmo ao mesmo tempo que as escurece para outras pessoas. Quase todos os cidadãos dos países civilizados desfrutam agora de boas estradas, água sem germes, proteção policial, bibliotecas gratuitas e provavelmente algum tipo de educação gratuita. A educação pública na Inglaterra tem ficado à míngua de dinheiro, mas pelo menos melhorou, graças, em grande parte, à dedicação de seus professores, e o hábito da leitura se difundiu bastante. Num grau cada vez maior, ricos e pobres leem os mesmos livros, veem os mesmos filmes e ouvem os mesmos programas de rádio. E as diferenças de seus modos de vida diminuíram graças à produção em massa de roupas baratas e melhorias nas moradias. No que diz respeito à aparência externa, as roupas de ricos e pobres, em especial no caso das mulheres, diferem muito menos agora que há trinta ou mesmo quinze anos. Quanto à moradia, a Inglaterra ainda tem cortiços que são uma mancha na civilização, mas construiu-se muito nos últimos dez anos, obra, em larga medida, das autoridades locais.” [...]
O espírito esportivo (The sporting spirit)
[...] “Fico sempre espantado quando ouço gente dizendo que o esporte cria boa vontade entre as nações, e que se as pessoas comuns do mundo pudessem se encontrar num jogo de futebol ou críquete, não teriam nenhuma inclinação para se encontrar no campo de batalha. Mesmo que não soubéssemos, a partir de exemplos concretos (as Olimpíadas de 1936, por exemplo), que as disputas esportivas internacionais levam a orgias de ódio, isso poderia ser deduzido de princípios gerais.
Quase todos os esportes praticados hoje em dia são competitivos. Joga-se para ganhar, e o jogo faz pouco sentido se não fizermos o máximo para vencer. No campo da aldeia, onde você escolhe lados e não há nenhum sentimento de patriotismo local envolvido, é possível jogar simplesmente pelo divertimento e pelo exercício; mas assim que surge a questão do prestígio, assim que você sente que você e uma unidade maior serão execrados se perderem, despertam-se os instintos combativos mais selvagens. Quem já participou de um jogo de futebol, nem que seja na escola, sabe disso. No cenário internacional, o esporte é francamente um arremedo de guerra. Porém, o mais significativo não é o comportamento dos jogadores, mas a atitude dos espectadores, das nações que ficam furiosas em relação a essas disputas absurdas e acreditam seriamente — ao menos por períodos curtos — que correr, saltar e chutar uma bola são testes de virtude nacional.”
[...] “Assim que sentimentos fortes de rivalidade são incitados, desaparece a noção de jogar o jogo conforme as regras. As pessoas querem ver um lado por cima e outro humilhado, e esquecem que a vitória obtida pela trapaça ou pela intervenção da torcida não faz sentido. Até mesmo quando não intervêm fisicamente, os espectadores tentam influenciar o jogo, incentivando seu time e enervando o adversário com vaias e insultos. O esporte sério nada tem a ver com jogo limpo. Ele está vinculado a ódio, ciúme, jactância, desconsideração de todas as regras e prazer sádico de testemunhar violência: em outras palavras, é uma guerra sem os tiros.”
[...]
“Se quiséssemos aumentar o vasto fundo de má vontade existente no mundo neste momento, dificilmente poderíamos fazer melhor do que promover uma série de jogos de futebol entre judeus e árabes, alemães e tchecos, indianos e britânicos, russos e poloneses, e italianos e iugoslavos, em que cada jogo seria assistido por uma plateia mista de 100 mil espectadores. É claro que não estou sugerindo que o esporte é uma das principais causas da rivalidade internacional; penso que o esporte em grande escala é apenas mais um efeito das causas que produziram o nacionalismo. Ainda assim, tornamos as coisas piores por mandar um time de onze homens, rotulados de campeões nacionais, lutar contra um time rival e deixar que todos os envolvidos sintam que a nação que for derrotada vai “perder a dignidade”.”
6 | O sapo tem o olho mais bonito
Marrakesh (Marrakech)
“Mas o que é estranho em relação a essas pessoas é sua invisibilidade. Durante várias semanas, sempre por volta da mesma hora do dia, a fila de mulheres velhas havia passado pela minha casa com sua lenha, e embora elas tivessem se registrado em meus globos oculares, não posso dizer com certeza que as vi. Passou lenha — foi isso que eu vi. Foi somente naquele dia que aconteceu de eu estar caminhando atrás delas que o curioso movimento para cima e para baixo da pilha de lenha chamou minha atenção para o ser humano que estava embaixo dela. Então, pela primeira vez, notei os corpos pobres e velhos da cor da terra, corpos reduzidos a ossos e pele coriácea, encurvados sob o peso esmagador. Contudo, imagino que não fazia cinco minutos que eu estava em solo marroquino quando notei o excesso de carga sobre os burros e fiquei enfurecido com aquilo. Não há dúvida de que os burros são extremamente maltratados. O burro marroquino é pouco maior que um cão são-bernardo, leva uma carga que no Exército britânico seria considerada demais para uma mula de metro e meio de altura, e com muita frequência não tiram sua albarda do lombo durante semanas a fio. Mas o que é peculiarmente lamentável é que se trata do animal de maior boa vontade da Terra, segue seu dono como um cachorro e não precisa de rédea nem cabresto. Após uma dezena de anos de trabalho devotado, de repente cai morto e seu dono o joga na vala e os cães da aldeia rasgam suas entranhas antes que fique frio.
Esse tipo de coisa faz o sangue da gente ferver, enquanto, em geral, o mesmo não acontece diante do sofrimento dos seres humanos. Não estou criticando, apenas apontando um fato. As pessoas com pele marrom são quase invisíveis. Qualquer um pode sentir pena do burro com seu lombo atormentado, mas deve-se, em geral, a um acidente o fato de alguém notar a velha com sua carga de lenha.”
Algumas reflexões sobre o sapo comum (Some thoughts on the common toad)
[...]
“Com certeza, devemos estar descontentes, não devemos simplesmente encontrar maneiras de fazer o melhor de um emprego ruim, mas, se matarmos todo o prazer no processo concreto da vida, que espécie de futuro estamos preparando para nós mesmos? Se um homem não pode apreciar o retorno da primavera, por que deveria ficar feliz numa utopia que economizasse trabalho? O que ele fará com o lazer que a máquina lhe dará? Sempre suspeitei que se nossos problemas políticos e econômicos forem alguma vez efetivamente resolvidos, a vida se tornará mais simples, em vez de mais complexa, e que o tipo de prazer que obtemos ao descobrir a primeira prímula parecerá maior do que o tipo de prazer que obtemos tomando um sorvete ao som de um jukebox. Penso que ao reter o amor de nossa infância por coisas como árvores, peixes, borboletas e — para voltar ao meu primeiro exemplo — sapos, tornamos mais provável um futuro pacífico e decente, e que ao pregar a doutrina de que nada deve ser admirado, exceto aço e concreto, apenas tornamos mais certo que os seres humanos não terão escape para sua energia excedente, exceto no ódio e no culto ao líder.
De qualquer modo, a primavera chegou, até no centro de Londres, e eles não podem impedir você de desfrutá-la. Eis uma reflexão gratificante. Quantas vezes fiquei vendo os sapos se acasalarem, ou um par de lebres disputando uma luta de boxe no campo de trigo, e pensem em todas as pessoas importantes que me impediriam de apreciar isso se pudessem. Mas felizmente não podem. Enquanto você não estiver de fato doente, faminto, assustado ou enclausurado numa prisão ou num campo de férias, a primavera ainda será a primavera. As bombas atômicas estão se empilhando nas fábricas, a polícia está rondando pelas cidades, as mentiras jorram dos alto falantes, mas a Terra ainda gira em torno do Sol, e nem os ditadores ou burocratas, por mais que desaprovem o processo, são capazes de impedi-lo.”