Israel145 07/09/2012Um manicaca, a princípio, é um documento que retrata a cidade de Teresina no começo do século XX. Recém fundada, a jovem capital é retratada nos seus mínimos detalhes a partir dos hábitos e costumes do povo, do verde de sua paisagem, nos laços com o rio Parnaíba, além dos tipos hoje perdidos por motivos óbvios, como o acendedor de lampiões, ou o condutor do burro que distribuía água em ancoretas. As festas também são bem detalhadas nessa cidade que ainda estava desabrochando na época que Abdias Neves escreveu seu romance.
Esse é praticamente o ponto mais positivo do livro. Hoje, um registro histórico desse porte é raro, senão único, dos hábitos e costumes que se perderam. Em termos literários, o livro não empolga tanto. Escrito com linguagem coloquial e fortemente influenciado pela estética naturalista, há uma forte presença de Aluísio Azevedo e Eça de Queirós no enredo, que trata do triângulo amoroso entre Júlia, Araújo (o marido) e Luís Borges, melhor amigo de Araújo e amante de Júlia. Acontece que os fatos narrados são apresentados ao leitor e a partir daí, não se desenvolvem muito, sempre remoendo as mesmas situações: Araújo é tísico, a mulher é quem manda na casa, toda a vizinhança suspeita do romance entre Luís Borges e Júlia e pronto. Fica nisso mesmo, criando uma vaga expectativa caso o adultério seja descoberto, mas só vaga mesmo, porque se é a mulher quem manda, e se Araújo descobrir, o leitor pode até prever que, ou ele vai perdoá-la, ou vai ignorar o fato.
Outro personagem que tem um papel importante no livro (não na trama) é o Dr. Praxedes, bacharel em direto, culto e maçom. E seu papel é nada mais nada menos que ser a voz de Abdias Neves contra a igreja católica da época, que rendeu a meu ver, uma das grandes falhas do livro que é o excesso de críticas ao clero. O erro na dose causa um mal estar ao leitor que se enfada com os mesmos argumentos durante o livro todo, onde o autor usa o cientificismo para rebater e condenar as práticas da época. Os demais personagens na trama são tão clichês que se percebe de cara que Abdias só os criou para interagirem com seu Dr. Praxedes, e servirem de fantoches para retratar os cristãos alienados, hipócritas e ignorantes.
Dessa galeria de personagens, nenhum é capaz de ser aquele que o leitor se identifica, pois Araújo é um chorão que passa os dias padecendo sob a tísica e sendo comandado pela mulher. Júlia é uma megera, age como a pior das putas. Luís Borges é talvez o mais escroto por trair o melhor amigo e Praxedes é o mais enfadonho com suas teorias chatas e batidas (pros dias de hoje). Sendo, que olhando por esse ponto de vista, o melhor personagem chega a ser a própria cidade de Teresina (lembra muito o lance de O cortiço, de Aluísio Azevedo), e fica a dúvida se essa tese não foi propositalmente inserida por Abdias Neves no romance.
A respeito da edição, a editora Corisco já faliu por aqui, e pelo menos nesse livro, teve a frente o pedante Cineas Santos, que se acha imbuído de uma aura de ser o semeador da cultura piauiense e se auto elevou a essa categoria destituído de toda e qualquer humildade. Seu trabalho como editor deixa a desejar. Na sua ânsia de produzir algo relevante, encheu a obra de notas ao final de cada capítulo, com essas referências copiadas de outras edições de Um manicaca e outras extremamente corriqueiras e usuais ainda nos nossos dias, como por exemplo, “ter sarna pra se coçar”, que é uma expressão corriqueira e usual no dia a dia e qualquer adulto sabe o que significa.
Pra encerrar, Um manicaca vale mais como um documento histórico, escrito de Teresinense pra Teresinense, com seu vocabulário e costumes esquecidos, mas como obra literária deixa muito a desejar.