Leticia 25/03/2009
Um editor, de Ariano Suassuna.
Publicado em http://www1.an.com.br/1999/jul/27/0opi.htm
No capítulo em que, no "Dom Quixote", o padre e o barbeiro começam a queimar os romances de cavalaria que tinham enlouquecido o Cavaleiro da Triste Figura, existe um trecho que sempre me intrigou. No momento em que o barbeiro pega "Tirante, o Branco" e quer jogá-lo ao auto de fé da fogueira literária, o padre o impede, exclamando: - Passe-me cá o livro, compadre. Agirei como quem sempre encontrou nele um tesouro de satisfação e mina de passatempos. (...) Por seu estilo, é este o melhor livro do mundo: aqui os cavaleiros comem, dormem, morrem em suas camas e fazem testamento antes de sua morte, com tudo o mais que falta aos demais livros deste gênero.
A partir daí é que as palavras postas por Cervantes na boca do cura me intrigavam: porque, na minha opinião, o padre as conclui de modo contraditório em relação ao começo. Na verdade, depois de considerar "Tirante, o Branco" como "o melhor livro do mundo", remata-se assim o comentário: - Por isso, digo-vos que quem o compôs, não tendo perpetrado tantas leviandades sem razão, merecia que o lançassem às galeras por todos os dias de sua vida.
Sou um velho entusiasta de novelas de cavalaria, como, entre outras, "Tristão e Iseu" e "A Demanda do Santo Graal". Mas, até o ano passado, nunca lera "Tirante, o Branco", simplesmente porque não encontrava o livro em biblioteca nenhuma. Foi aí que apareceu um editor, Cláudio Giordano, que é também um apaixonado por tais livros e que teve o bom gosto e a coragem de traduzir e editar o romance, escrito originalmente em catalão por Joanot Martorell.
Num gesto de generosidade que nunca esquecerei, Cláudio Giordano me presenteou com o livro. Li-o e fiquei encantado, entre outras coisas ao descobrir como foi grande a influência dele sobre o "Dom Quixote". O melhor, porém, é que, em nota colocada antes da apresentação, Cláudio Giordano, baseado em Martí de Riquer, esclarece aquela aparente contradição de Cervantes. Lembra que, em espanhol (como em português, recorde-se), "galera" é também "uma tábua na qual o tipógrafo ia colocando as frases de um texto a ser impresso", motivo pelo qual "lançar às galeras" pode, às vezes, significar "imprimir".
Assim, a frase do cura não configurava uma contradição: o que Cervantes estava dizendo por sua boca era que, como autor "do melhor livro do mundo", Joanot Martorell era digno de continuar sendo impresso "por todos os dias de sua vida".
Por tudo isso, quero mandar, daqui, meu braço a Cláudio Giordano, que, talvez sem o suspeitar, me deu, com "Tirante, o Branco", uma das maiores ajudas que já recebi para levar adiante meu trabalho de escritor.
Ariano Suassuna, escritor/PE