Leitora Viciada 21/01/2012Mais um livro da Estronho de qualidade excelente. Ótima escolha de manuscrito, diagramação linda rica em detalhes e revisão perfeita. A capa do livro consegue transmitir sua essência como um esboço.
Ainda não tinha lido nenhum conto da portuguesa Valentina, embora tenha me interessado de imediato por seu primeiro romance. A sinopse me instigou, a capa me convidou e o trabalho da Estronho me agrada totalmente. Estava com muita vontade de ler o livro, que me parecia um terror psicológico dramático.
Quando leio um livro com uma temática forte, que me provoca uma série diferente de sentimentos, sinto dificuldade em resenhar. É complicado tentar explicar todas as reações que tive no decorrer dessa leitura, tanto psicológicas quanto físicas. Sim, reações físicas.
Quantos livros são capazes de provocar este tipo de sensação física, do início ao fim? Ter reações psicológicas, é muito mais comum, agora físicas? Raríssimo. E foi mais ou menos isso que Distúrbio provocou em mim: uma série de sentimentos e reações, uma mistura inexplicável.
Valentina escreve com naturalidade, espontaneidade. Mesmo nas partes angustiantes ela mantém uma bonita sensibilidade e de forma leve nos mostra cada cena. O português de Portugal é muito mais charmoso e enfeitado, deixando o texto mais belo e atraente. Pensei que estranharia algumas coisas, porém nem cheguei perto disso (as expressões típicas usadas lá são explicadas no rodapé, mas são poucas). Pelo contrário: fiquei admirada com cada frase.
A narrativa é contada em terceira pessoa e apesar de nos apresentar ideias e sentimentos de todas as personagens em geral, o foco está na personagem Rossana, quem acompanhamos por todo o livro.
A história é escrita de forma a nos apresentar detalhes de tudo o que a menina sofre, sente, sonho e pensa. Através desse ato esplendidamente realizado pela autora é que me transportei para a pele de Rossana e senti tantas coisas.
Senti pena, compaixão, em ver uma menina sofrer tanto. Uma criança indefesa, inocente e sonhadora sofrer por causa do desiquilíbrio dos pais. A mãe é totalmente lunática, omissa e insatisfeita. O pai é tarado, pedófilo e inescrupuloso. Ambos são falsos e maldosos. Escondem de todos a obscuridade de suas almas e fingem ser um casal que se ama. Exibem a mansão luxuosa de belo jardim e os filhos bonitos como se fossem troféus de uma vida feliz e perfeita. Isso deixa o cenário amargo e pesado. Um ambiente hostil para qualquer criança viver.
Perpétua, a mãe, é frustrada por nunca ter atingido o objetivo de ser modelo e famosa, admirada por sua beleza. Quando nasce sua primogênita, uma menina exageradamente linda, ela vê a possibilidade de realizar seu sonho através dela, mesmo que para isso a menina não tenha uma vida normal.
Carlos, o pai, está sempre ausente e vive tendo casos fora do casamento, sendo que muitos deles com menores de idade. É um pedófilo viciado que não consegue tirar a filha de suas fantasias pervertidas. Ela está crescendo e tornando-se cada vez mais bonita.
Rossana é uma menina doce, boa e obediente. Respeita os pais e ama os irmãos mais novos: as gêmeas e o bebê. Possui um bom rendimento escolar e não reclama das obrigações impostas pela mãe.
Para ela, sua mãe deseja-lhe o melhor com a carreira de modelo, e por isso, o sofrimento e dor derivados dos pesados exercícios físicos e dietas fortemente restritas são seguidos a risca. Até, porque, não existe solução.
Ela sofre muito por não poder brincar e se divertir como todas as crianças de sua idade. Não pode se sujar, nem comer coisas gostosas, muito menos se vestir como suas amigas, de forma descontraída. Veste-se como mulher e precisa estar sempre de maquiagem e cabelos feitos. ela detesta ser bonita.
Impressionante como essa menina é centrada e forte. Em como ela encara os abusos da mãe com naturalidade. Sua felicidade é ter a companhia os irmãos, a quem tanto ama.
O pior acontece e muda drasticamente a vida da menina inocente. O pai passa a estuprá-la e a abusar cada vez mais dela. A menina é forçada de forma violenta a ser mulher. Ela não pode mais ser menina, porque agora sente-se suja e nojenta. Mas não se sente mulher, porque sua feminilidade surgiu da dor e da tristeza. Ela só queria ser criança.
Mas em seu íntimo ela esconde a esperança de um dia ter uma vida feliz e normal, como suas colegas de escola. Ela deseja ser amada e respeitada pelos pais.
Esse é o ponto de partida de Distúrbio. Mergulhamos em personagens e cenas fortes, que nos fazem pensar repetidamente em quantos lares esse terror ocorre. Quantas crianças sofrem nas mãos de quem mais deveria protegê-las e amá-las. Quantas vidas são destruídas, quantos corações são maltratados, quantas mentes são traumatizadas.
O horror que Rossana enfrenta dentro do próprio lar, dentro do próprio quarto me causou pena, repulsa e ódio. Meu estômago por vezes embrulhava, meu coração pesava no peito. Como pode uma menina tão amável ser tão maltratada pelos pais? Em vários momentos eu não sabia o que era pior, se o abuso físico ou o psicológico; as ameaças ou os castigos.
O desespero que começa a se apoderar do coração da menina, fazendo-a ter pensamentos insanos e agir de forma errada.
O livro é chocante, viciante e poderoso. As últimas páginas são frenéticas. O final é imprevisível. Até a última linha, você não imagina como tudo acabará.
Leitura recomendada para quem gosta de um livro muito bem escrito, comovente e inquietante. Não há a possibilidade do leitor não ser afetado de alguma forma.
No Skoob, dei cinco estrelas, se pudesse daria mais. Um livro acima da média. Há muito tempo não lia um livro que acelerasse minha pulsação, que me deixasse com vontade de interferir na história. Eu queria a todo o momento salvar a menina e seus irmãos, de retirá-los daquele pesadelo.
Trechos:
"Perpétua pestanejou seis vezes para ter a certeza do que estava a ver. Sim, ele olhava realmente para a filha. Um olhar de desejo, pensou."
"Perpétua vestia a filha como uma mulher. E o pior, uma mulher sem classe, exibindo constantemente as pernas e o decote ainda em desenvolvimento."
"Ouviu-se a porta de cerejeira envernizada fechar e a chave rodar duas vezes como gritos de uma pessoa em perigo. Rossana tremia dos pés à cabeça."
"As lágrimas estavam trancadas nos cantos dos olhos e só não as soltava para não dar na vista, mas chorava, todo o seu interior chorava descontroladamente."
"– Se vos tenho, minhas filhas, é por algum motivo. Tu, Roxie, tinhas o dever de me satisfazer. Se achas que não é capaz, se és assim fraca, terei de pedir às suas irmãs."