David Ariru 08/05/2017
Ousado
Um grande poema, e não só literalmente. Um poema onde o autor se expressa com grande liberdade. A estrutura é totalmente anárquica, não levando em conta o número predeterminado de versos em uma estrofe ou o número total de estrofes do poema, além de desprezar também as rimas forçadas. Sem seguir um modo determinado e rígido de organização, a leitura se apresenta às vezes fluida e com traços de prosa, às vezes com versos dispostos a construir uma estética visual, algo bem comum no concretismo. Alguns versos têm apenas uma ou duas palavras, até mesmo um monossílabo, além disso, nem sempre estão rentes à margem esquerda da folha onde normalmente deveriam estar. Aliás, no poema, o sentido da palavra “deveria” é desconsiderado, nada ali é como deve ser, mas como Gullar quis que fosse.
Já no início da leitura se percebe a quase absoluta ausência de vírgulas — pausas indicadas —, o que nos leva a investigar por outros meios possíveis que não seja esse, onde começa uma frase, onde ela termina e qual os sentidos possíveis que essa ausência de vírgulas pode gerar em cada contexto. É um efeito similar ao que acontece nos textos de Saramago, os quais levam o leitor a parar para analisar quem está falando; qual personagem está com a palavra. Ou seja, a estrutura do texto é viva, efetiva, parte integrante e indissociável do poema e de seu conteúdo. Assim, mesmo renegando as estruturas clássicas e aclamadas da poesia, a estrutura do Poema Sujo não só não deixa de ser poética, como também se torna mais que isso; livre e inovadora.
O conteúdo carrega também a mesma liberdade da estrutura, e narra com palavras simples a simplicidade de seu passado e de sua terra natal. Fala do autor na cidade, da cidade nele e da cidade em si; dela mesma, como suas ruas, esquinas e moradores, é a cidade com seus personagens e como personagem. E ele faz isso sempre com palavras simples, sem enfeitar o poema, sem nem mesmo usar uma ênclise ou uma mesóclise durante todo o texto. É o tipo de livro que não exige um dicionário para ser lido, onde a intuição é a grande ferramenta para o leitor entender o poema; sentir o poema.
Ferreira Gullar, em exílio, em Buenos Aires, em solidão, fez o que talvez só nesse contexto poderia ter feito. Talvez só na solidão em que se encontrava, talvez só sentindo o que sentia naquele momento da vida pudesse ser tão livre para escrever o que quisesse e como o quisesse; para ousar como ousou. Por isso descrevo o Poema Suja sobretudo como um poema ousado.