Jivago 25/04/2022A volta para casaImpera no ocidente um imaginário limitado quando a questão é fim do regime nazista e as atrocidades humanitárias cometidas pelos signatários do terceiro reich. Primo Levi escreve "A trégua" para narrar sua angustiante, atormentada, aviltante, desesperadora viagem de volta para casa após a liberação da barbárie dos campos de concentração - narrados de maneira primorosa por ele em "É isto um homem?". Ou melhor, diria que o autor escreve essa sequência para provar que não há horror que não possa ser narrado; é justamente o oposto: a própria natureza das experiências às quais uma parcela significativa de judeus e indivíduos "desviantes" em relação à máquina de morte nazista foram submetidos exige que a história seja contada repetidamente para que se posso expor ao mundo a extensão do seu horror e para que sirva de alerta às gerações futuras.
O retorno, como nunca poderíamos imaginar se não fosse pelo registro de quem viveu, e claro, pelo trabalho dos historiadores, acabou por se configurar como um adiamento da sonhada liberdade. Ao serem libertados dos campos de concentração os prisioneiros passam às mãos da máquina burocrática da então combalida URSS. Primo Levi transitaria, saindo da Polônia e transportado em vagões de trens, pelos confins do leste europeu. Um sentido oposto ao da localização geográfica de sua pátria, a Itália. O autor e seus companheiros de período pós-libertação têm que lidar durante meses com a fome, as doenças, o desalento, mas, sobretudo, com a incerteza e a angústia de um futuro incerto e o intenso desejo de ter sua liberdade finalmente consumada. No percurso, através da ótica do próprio autor, testemunhamos uma Europa e seus filhos arrasados pelas marcas da guerra. Muitos dos personagens que cruzam o caminho de Primo Levi encontram-se em situação análoga: sejam eles órfãos, médicos ou militares, o pós-guerra representou para todos um período de completo desarranjo e demandou esforço incomensurável para que a sonhada normalidade e, no caso de alguns, repatriamento, fossem conquistados.
Mas mesmo com a prolongação das angústias e do sofrimento somos felizmente saudados com o retorno do autor à sua terra. Embora leiamos o livro já sabendo da sobrevivência daquele que narra, é curioso como o final tem um efeito completamente diverso daquele que somos levados a acreditar que encontraríamos, muito por conta da ideia de uma "jornada" que parece que vai se delineando à nossa frente à medida que progredimos na leitura. É o completo oposto, o final do livro talvez seja a grande revelação do abismo criado pelo regime nazista nas almas daqueles que sofreram sobre seu julgo. As marcas dessa experiência na psique desses indivíduos são inimagináveis e duradouras, eternas talvez. Por isso a sensação de que não há um fechamento, um final apropriado, mas sim o início de uma nova jornada, silenciosa, melancólica, mais íntima, a partir daquele momento. Primo Levi coloca muito de sua própria personalidade em sua escrita, em suas rememorações precisas e (correndo o risco de ser contraditório ao me referir à essa catástrofe dessa maneira: poéticas) de paisagens, cenas, pessoas e situações com as quais se deparou durante o período pós-libertação. Sua narrativa é um relato pessoal e assombroso de uma catástrofe superada, mas que perdura no nosso imaginário e moldou a história do mundo. Lê-lo é não somente adentrar sua história em nível pessoal, mas cumprir um dever cívico diante da humanidade e a tomada de consciência desse dever é talvez o feito que se sobressai após a leitura da obra.