Odisséia I

Odisséia I Homero
Donaldo Schüler




Resenhas - Odisséia I


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19/07/2009

A poesia de Homero – Aspectos Evolutivos de uma Civilização.
Introdução

A Odisséia e a Ilíada de Homero são os legados literários mais antigos do ocidente, constituindo também as mais importantes fontes escritas da civilização grega anterior ao século VIII a.C. O presente artigo visa apresentar alguns aspectos evolutivos da civilização grega sob a ótica da Ilíada e, sobretudo, da Odisséia de Homero, mostrando em que medida estes poemas representam e registram mudanças culturais, políticas, sociais e tecnológicas desta sociedade.
Antes de entrar propriamente no assunto que nos concerne, é preciso antes fazer aqui uma pequena advertência. A noção de evolução, devido à enorme influencia no mundo contemporâneo exercida pela teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, possui uma carga conceitual muito forte. Portanto, o uso deste termo para tratar de questões relacionadas à cultura de um povo poderia transmitir a idéia errônea e até preconceituosa de que uma cultura, no caso a grega, seria mais evoluída, ou superior, às outras culturas contemporâneas a ela. O sentido de evolução que nos interessa aqui é o de movimento, passagem, mudança, algo similar ao sentido que evolução tem no desfile de uma escola de samba, que evolui ao longo da avenida.

Da oralidade à escrita

Até meados do século XX, os dois poemas homéricos eram as únicas fontes escritas consideradas “fiéis” acerca da civilização micênica derruída no século XII a.C. Foi somente na década de 1950 que os arqueólogos ingleses Michael Ventris e John Chadwick decifraram a escrita Linear B, que foi usada na civilização micênica pelos escribas e estava gravada em diversas tabuinhas de argila e em vasos encontrados em palácios nas cidades de Pilos, Micenas, Tirinto, Tebas, em Cnossos e Cânia. Desde então, tem se tentado estabelecer paralelos e analogias que ressoem os poemas homéricos, nem sempre com sucesso, uma vez que Homero não chega a citar nem uma única vez os escribas e o trabalho que desenvolviam. O fato é que a escrita Linear B era usada para fazer registros contábeis relacionados à vida palaciana, não foi encontrado nenhum artefato contendo inscrições em Linear B fora dos palácios, portanto, ela deveria cumprir tão somente funções burocráticas, tais como registrar a quantia de cabeças de animais das propriedades.
Após a queda do mundo micênico no século XII, a Grécia mergulhou em um período histórico do qual muito pouco se sabe, devido à escassez de fontes arqueológicas da época, por conta disso, e também porque o comércio, a escrita e todo o modo de viver palaciano, baseado na figura do rei (Ἄναξ), se extinguiram, convencionou-se chamar este período, de maneira um tanto anacrônica, de “Idade Média Grega”. Somente quatro séculos mais tarde, com a volta do comércio, o fim das invasões territoriais, e o início da formação da pólis clássica, a escrita voltaria ao convívio da sociedade grega, mas desta vez assumindo outras funções além do utilitário.
Antes de Homero, não há registro na Grécia de uma escrita usada com fins artísticos, uma vez que depois do desaparecimento da escrita Linear B, que só era usada com fins administrativos, até o século VIII a cultura grega do período “medieval” se deu de modo eminentemente oral. A adoção do alfabeto fenício, no início do século VIII a.C., permitiu, pois, uma transcrição fonética mais satisfatória, pois esta incluía uma inovação grega que eram as vogais, a saber, o alfa, o épsilon, o iota, o ômicron, o ípsilon, e mais tarde o eta e o ômega. Embora as primeiras civilizações tivessem como único meio de transmissão oral a poesia, ou seja, a forma da poesia não era uma escolha estética do autor, estas inovações deram à língua uma maior plasticidade, imprescindível para estabelecer uma forma escrita da expressão poética.
Estas foram as condições que possibilitaram a Homero, ou quem quer que sejam os autores da Ilíada e da Odisséia, compor poemas de grande riqueza formal e beleza poética. Em si mesmos, os dois poemas são o testemunho de uma importante evolução lingüística pela qual passou o idioma grego, uma vez que a Linear B era uma escrita silábica, sem vogal e inapta a transmitir a riqueza fonética da expressão oral da língua.

O espaço público

Muito embora ainda faltassem quatro séculos para o surgimento da pólis clássica, é possível encontrar elementos na civilização micênica representados tanto na Ilíada quanto na Odisséia, que antecipam algumas tendências da vida pública. O uso da palavra nas assembléias dos reis já apontava a importância que iria adquirir séculos depois a retórica na pólis grega. Na famosa fala de Fênix a Aquiles no canto IX da Ilíada isto fica patente:

“[...] Peleu, domador-
-de-corcéis, quando , há tempo, da Ftia te mandou
A Agamêmnon, enviou-me contigo; eras muito
Jovem, inexperiente ainda da guerra crua
E dos debates da ágora, onde nobres formam-se (os grifos são nossos)
Por isso me mandou, para que te fizesse
na oratória eminente, eficiente nas obras.”
(Ilíada, IX, 438 – 444.)

Os nobres dos poemas homéricos tratam-se mutuamente como iguais, aquele que porta o cetro tem a palavra e o aval divino, enquanto porta o cetro, sua palavra possui o poder e a legitimidade perante a assembléia. Segundo Pierre Vidal –Naquet, “evidentemente Agamêmnon é o rei dos reis, e Ulisses é o rei de Ítaca e de algumas ilhas que a cercam, mas eles não são soberanos absolutos. Agamêmnon não toma decisão sem reunir a assembléia dos guerreiros e o conselho dos reis. Da mesma forma, Alcínoo, rei dos feaces, e Príamo convocam os seus aliados”.¹ Na Odisséia, Telêmaco, antes de partir em busca de notícias do pai, convoca a assembléia, toma o cetro e proclama na ágora sua indignação e seus planos perante o conselho dos anciãos, no fim, atira ao chão o cetro divino como se dissesse que ninguém ali possui legitimidade para contrapor-lhe a fala. Este é momento onde se dá a formação do homem nobre que o trecho da Ilíada citada acima remetia, é a aurora ou iniciação de Telêmaco, que marca a passagem da efebia à vida adulta. Muito embora seu interesse seja de ordem privada, a legitimidade das suas ações se dá pela publicidade das intenções.
É importante notar, por um lado, que Odisseu é o herói caracterizado não pela força, mas pela astúcia, sobretudo com a palavra e que, por outro lado, esta é um importante índice, junto com o hábito alimentar, para tomar em consideração o nível civilizatório de um povo. Um exemplo disso é a visita de Odisseu à caverna de Polifemo, o monstro de um olho só, que faz parte de um povo que não respeita a hospitalidade; não conhece a agricultura e, portanto, é canibal, ao invés de “comedor de pão”; também não conhece a vida em sociedade, onde o uso da palavra persuasiva é o atributo do homem racional e civilizado.
Uma famosa passagem da Política de Aristóteles, na qual ele fala da natureza humana e suas características e cita Homero, é bastante esclarecedora a esse respeito:

“Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social [outras traduções preferem animal político], e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade (como o ‘sem clã, sem leis, sem lar’ de que Homero fala com escárnio, pois ao mesmo tempo ele é ávido de combates), e se poderia compará-lo a uma peça isolada do jogo de gamão. Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala”.
(Aristóteles, Política, I, 1, 1253ª)

Neste sentido, pode-se dizer que o povo que faz uso da palavra e da vida em sociedade, dentro de uma escala de evolução social, está à frente de um povo de hábitos antropofágicos e apolíticos, que utiliza tão somente a força bruta no contato com o outro. O homem é por natureza um ser político que utiliza como instrumento civilizador a própria capacidade de falar e persuadir o outro, sob a condição de que estejam em pé de igualdade.


Os trigais de Deméter

Certamente havia na poesia de Homero uma representação do mundo que também denotava a “realidade” e que ajuda-nos a entender melhor a sua obra, sobretudo a Odisséia. Entre estes indícios está, como dissemos acima, o conhecimento da cultura do trigo para fazer pão. Toda a telemaquia se dá no contexto de um mundo “real”, de Ítaca a Pilos e Esparta, Telêmaco não tem contato com o selvagem, são todos “comedores de pão”, devotos da deusa Deméter, senhora dos trigais. Menelau, ao ofertar os dons de hospitalidade a Telêmaco, entre eles corcéis e um carro, recebe a seguinte resposta:

“[...] És senhor de pradarias
Imensas. Campos relvados não te faltam, fartos também
em alfafa, cercam-te trigais ondulantes, branqueja a (o grifo é nosso)
cevada. Ítaca é pobre em planícies e prados. Mais do que
potros atraem-me cabras. Territórios verdejantes para a
criação de cavalos não temos em nenhuma de nossas
ilhas”.
(Odisséia, IV, 602 – 607.)

Quando Menelau narra a Telêmaco sua passagem pelo Egito, onde ficou retido ao retornar da guerra de Tróia, faz a seguinte observação sobre a agricultura e a medicina egípcia:

“O solo egípcio, riquíssimo em ervas, produz
plantas benéficas e nocivas. Todo egípcio é médico. Os
egípcios são mais instruídos que outros”.
(Odisséia, IV, 229 – 231)

A cultura, sobretudo do trigo, é um critério absoluto do nível civilizatório de um povo. Se considerarmos as duas outras plantas que fazem parte da chamada “trilogia mediterrânea” – a videira e a oliveira – , segundo Pierre Vidal-Naquet, “constataremos que elas podem estar presentes no mundo selvagem, o que não ocorre com o trigo”.²
Numa passagem da catábase de Odisseu, o vidente Tirésias lhe vaticina no Hades que ele deve encontrar uma morte tranqüila longe do mar, e lança as seguintes palavras

“[...] quando outro caminhante te encontrar,
supondo que é pá o remo no teu ombro, fincarás na
terra a lâmina que fere as águas, sacrifícios farás ao
Senhor dos mares”.
(Odisséia, XI, 128 – 131.)

A palavra traduzida por “pá” (ἀθηρηλοιγὸν) é na verdade uma ferramenta usada para debulhar ou malhar o trigo, usada até hoje, por exemplo, em algumas festas tradicionais em aldeias da fronteira entre Portugal e Espanha. A palavra mais adequada para traduzir este termo seria talvez, malho, ao invés de pá. Eis então um símbolo de que o destino de Odisseu não se vincula necessariamente ao mar, mas ao cultivo da terra e à produção do trigo.


A oficina de Hefesto

É interessante notar que Homero viveu na idade do ferro, onde as armas eram fabricadas todas com esse material, o síderos (Σίδηρος – ferro; donde vem siderurgia), no entanto, as armas descritas nos dois poemas épicos são sempre feitas de bronze, o que para Vidal-Naquet conferia ao poema certo “sabor exótico”. O fato é que o bronze, que é uma liga composta de cobre e estanho, demandava um trabalho de extração, transporte, mineração, fundição e modelagem de alta tecnologia para a época. Não obstante, segundo o prof. Wilson Ribeiro Jr., “o uso do metal para a confecção de estátuas, vasos e outros objetos remonta, no Mediterrâneo Oriental, ao III milênio a.C. O bronze, liga metálica com 90% de cobre e 10% de estanho de grande maleabilidade e excelente acabamento, foi adotada pelos gregos entre 2500 e 2000 a.C., em plena ‘Idade do Bronze’” ³. Há, pois, uma passagem da Odisséia que corrobora esta proposição. Nesta, o herói dirige-se ao palácio de Alcínoo, o narrador descreve o palácio do rei nos seguintes termos (note-se a referência aos ornamentos metálicos em ouro, prata e bronze e a referência ao trabalho de um artista, o próprio Hefesto, deus da metalurgia):

“Odisseu prosseguiu a marcha rumo ao palácio.
Batia-lhe o coração quando pousou o pé na
soleira de bronze. O brilho em torno da casa de
Alcínoo lembrava os raios do sol e da lua. Bronze
revestia as paredes de ponta a ponta. No alto
corria um friso de pedras azuladas. Portas
guarnecidas de ouro cerravam o palácio. Colunas
de prata em piso de bronze sustentavam
a arquitrave prateada. De ouro era a cornija.
A porta era ladeada por cachorros feitos de ouro
- obra de Hefesto -, vigias do palácio de afável
Alcínoo. O artista os produzira para durarem
sempre sem serem molestados pelo peso dos anos”.
(Odisséia, VII, 82 – 94).

Além dos revestimentos de bronze, dos detalhes em prata e ouro e das estátuas também destes metais, nota-se ainda o uso de pedras azuis, provavelmente lápis-lazúli, no friso. A técnica de joalheria, que envolve o sutil manuseio de metais como ouro e prata, e de pedras como a cornalina, o lápis-lazúli etc, já estavam consideravelmente desenvolvidos no período micênico, graças a influencia dos artesãos minóico-cretenses nos centros micênicos. (vide figura abaixo)


Deusa recebe procissão de animais com jarros.
Anel de sinete de ouro de Tirinto.
Data: 1500-1400 a.C.

Atenas, National Archaeological Museum.
© Ekdotike Athenon.


Outro exemplo interessante é a longa descrição do escudo de Aquiles, no canto XVIII da Ilíada, que também fora forjado pelo deus ferreiro Hefesto, muito embora não se deva imaginar que tenha sido tomado de um modelo real por Homero, denota a inclinação grega de unir o labor à ornamentação artística.


Notas

¹ Vidal-Naquet, P. O mundo de Homero, pg. 29.

² Idem, ibidem, pg. 34.

³ Ribeiro Jr., W. A. O vaso de bronze de Derveni. Portal Graecia Antiqua, São Carlos. Disponível em www.greciantiga.org/arquivo.asp?num=0363. Consulta: 6/1/2009.


Bibliografia consultada

Homero, Ilíada - 2 vols. São Paulo, Arx, 2002.

Homero, Odisséia - 3 vols. São Paulo, L&PM, 2008.

Aristóteles, Política (Trad. de Mário da Gama Kury), Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1997.

Finley, M. I. Economia e Sociedade da Grécia Antiga. São Paulo, Martins Fontes, 1989.

Scheineider, N. Isso é grego para mim. RS, Unisinos, 2006.

Vidal-Naquet, P. O mundo de Homero. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
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victorialsva 23/09/2023

Eu já li esse livro uma boa quantidade de vezes, eu não estou acostumada com a linguagem dele mas consegui entender até.
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Wilker.Dantas 15/03/2020

A primeira parte da obra apresenta os quatro primeiros Cantos da epopeia de Homero, apresentando a busca de Telêmaco pelo pai, enquanto Odisseu vive uma série de aventuras. O livro é bom, e as notas do tradutor ajudam muito na compreensão.
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Aguinaldo 04/02/2011

Odisséia I
Depois do grande envolvimento que teve na tradução do Finnegans Wake, de James Joyce, e de colher os louros e os sucessos da empreitada Donaldo Schüler começou um outro grande projeto, a tradução da Odisséia. A LP&M acaba de lançar o primeiro volume desta tradução já que a edição (bilíngüe) foi planejada para divisão em 3 volumes. Este primeiro volume abarca os quatro primeiros cantos da obra. Há ao menos dez outras traduções completas da Odisséia no mercado livreiro brasileiro (vale lembra algumas: a clássica de Manuel Odorico Mendes, a antiga de Carlos Alberto Nunes, a em prosa de Jaime Bruna, a inovadora de Frederico Lourenço, a ligeira de Fernando C. de Araújo Gomes). Reconhecido como um grande helenista a tradução de Donaldo Schüler deve estimular jovens leitores ao clássico de Homero, pois é conhecido seu esforço, nas traduções, por criar neologismos e incorporar termos contemporâneos. Certamente aqueles familiarizados com o grego aproveitarão a chance para cotejar suas interpretações àquelas escolhidas por Donaldo e mesmo com as traduções mais antigas. Há um curto ensaio no final, onde o Donaldo reflete sobre seu projeto de tradução e justifica algumas de suas escolhas. Eu, que guardo na memória e canto as primeiras estrofes desde trinta e tantos anos atrás, por conta de uma leitura apaixonada na juventude, estranhei um tanto o ritmo e a musicalidade oferecida por Donaldo, mas não há porque desdenhar de seu genuíno esforço. Vou aguardar o segundo volume com um quase açodamento.
"Odisséia I - Telemaquia", Homero, tradução de Donaldo Schüler, editora LP&M, 1a. edição (2007) ISBN: 978-85-254-1636-0
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Mrs. Helena Hawthorn 09/04/2019

Valeu a experiência
Eu gostei da Odisséia, achei a história muito bacana, mas obviamente não se tornou um dos meus livros favoritos por causa da forma de cantos que é utilizada como narrativa.

Esse estilo acabou me deixando com um pouco de sono, apesar de ter lido numa edição relativamente fácil.

Gostei da experiência, aprendi muitas coisas novas sobre a mitologia grega lendo esta obra, mas por exemplo, Helena de Tróia parece ter se arrependido de fugir com Paris e não encontra mais nenhum problema em viver com seu marido Menelau. Eu nunca tinha ouvido isso antes lol.

Também me surpreendi com o machismo por parte de Telêmaco e os pretendentes de Penélope. E também me surpreendi com Atenas, que toma forma de homem durante a história inteira.

Estou lendo para a faculdade e, se não fosse por isso, acho que nunca teria pego esse livro para ler lol. Eu preciso ler o segundo volume também, mas não estou muito empolgada. Acredito que seja pelo fato de ter que ler mais rápido do que eu gostaria D:

Enfim, é um bom livro, não precisam ter medo! E é com certeza uma leitura MUST se gostam de história antiga ou mitologia :).
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