Javalis de Chernobyl 29/04/2024
“Senhores, admiramos que o homem não seja estúpido […] Mas, ainda que não seja estúpido, é monstruosamente ingrato! […] Penso até que a melhor definição do homem seja: um bípede ingrato. Mas isto ainda não é tudo, ainda não é seu maior defeito; o seu maior defeito é a sua permanente imoralidade […] e, por conseguinte, também a falta de bom senso […] Experimentai lançar um olhar para a história do gênero humano: o que vereis? […] Numa palavra, pode-se dizer tudo da História Universal - tudo quanto possa ocorrer à imaginação mais exaltada. Só não se pode dizer o seguinte: que é sensata.”(Pag.42/43)
Memórias do subsolo talvez seja a mais clássica das obras curtas do Dostoiévski. Uma história tão icônica, que o arquétipo do personagem principal originou outros personagens, como Travis Bickle, protagonista do longa de Scorcese, Taxi Driver.
O livro se divide em duas partes: A primeira consiste na apresentação das filosofias do personagem, pouco se sabe sobre quem é, além de ser um ex-funcionário público da administração czarista, aposentado. Um homem que vive do rancor e da mágoa acumulados ao longo da vida, e que se orgulha de ser um sujeito vil. Que despreza as fundações de sua sociedade e as crítica ao passo que fomenta sua forma de pensar. É um moralista. Nesse sentido, Dostoievski se mostra uma clara influência pra obras freudianas como Mal-estar na civilização, além de uma importante referência e fonte para historiadores pensarem a história contemporânea em meados do século XIX.
Por exemplo, no capítulo VII, entre as páginas 32 e 39, o personagem tece uma crítica a ideia ingênua da sociedade moderna, de que a civilização abranda os instintos de violência e maldade humanas, trazendo exemplos à sua época de que a civilização europeia produzia atos de violência tanto quanto qualquer período do passado (ele cita Napoleão III e a guerra de secessão). A civilização europeia, portanto, seria ainda mais bárbara, vil e sanguinária do que as outras, já que no passado a violência era um modus operandi pouco questionado, enquanto que a civilização moderna, avançada científica e moralmente - do ponto de vista eurocêntrico - julgava a violência um recurso da barbárie, e ainda assim o produzia em larga escala. Esse trecho é fundamental pra entender a critica a civilização ocidental e suas bases fundamentais, como a ciência e a filosofia iluminista. Dostoievski, aqui, se torna atemporal, ao pensarmos, se nos distanciarmos de seu tempo, no século XIX e as guerras que produziu, e também na própria Rússia do século XXI. Ele também ensaia uma leve crítica a teorias econômicas positivistas, como o socialismo.
A segunda parte narra algumas memórias da juventude do narrador, onde ele fala mais sobre sua vida social e dialoga com um interlocutor imaginário, no qual ele sempre imagina que este ri de seus relatos. Está sempre sugerindo que o leitor lê suas palavras com deleite, que ri de cada frase desesperada que ele deposita. Essa parte é onde Dostoiévski brilha, pra mim, apesar de que o final não me agrada tanto.
A grande ironia de Dostoievski nessa obra está na palavra do narrador, que claramente tem uma visão deturpada da realidade e de si mesmo: Diz pra nós que não é um covarde, quando se acovarda a todo tempo, declara seu desprezo por todos ao seu redor, quando muitas vezes apenas desejava ter amigos. O narrador é um homem amargurado, por ser excluído. É o que nós hoje conhecemos na internet como "incel".