Luigi.Schinzari 22/10/2020
Sobre O Processo Maurizius de Jakob Wassermann
O Processo Maurizius (Der Fall Maurizius, 1928), romance do autor alemão Jakob Wassermann (1873-1934), é uma obra incerta. Suas personagens, mesmo com suas características e convicções expostas ao leitor, são vacilantes e misteriosas até o fim; sua história nos inebria por conta das dúvidas existentes do começo à última palavra expressa na página final; e seu tema maior, a justiça, circundada por diversos outros tópicos que apenas um autor com a maestria de Wassermann saberia delinear tão bem como o fez, é confusa em suas decisões não só no contexto da obra -- a Alemanha pré-Primeira Guerra e a República de Weimar, período da narração do livro e contemporâneo aos fatos principais, no entreguerras -- como também na vivida por nós em nosso cenário brasileiro de séculos até os dias de hoje. Entretanto, sua qualidade não é passível de incertezas: é uma obra-prima da literatura universal indubitavelmente.
Etzel Andergast, protagonista da obra e filho do promotor Barão Wolf Von Andergast, jovem como é, entrega-se a seus ímpetos por justiça ao se deparar com uma possível injustiça cometida pelo pai anos antes de ter nascido (Etzel têm 16 anos e o processo decorreu há 18) no julgamento de Leonhart Maurizius, acusado de ter assassinado a tiros sua esposa Elli. O velho pai de Leonhart, Peter Paul Maurizius, vivendo unicamente pelo desejo de ver o filho, condenado a prisão perpétua, livre e acreditando, com base em dados colhidos ao longo dos anos e no conhecimento que possui sobre sua pessoa, na inocência do filho, traz a tona o caso ao rodear o ambiente familiar dos Andergast e entrar em contato com Etzel, que acaba valendo-se de seus impulsos juvenis para resolver, acredita ele, a injustiça do pai ao ir em busca das informações que poderão absolver Maurizius. Parte daí a premissa da obra de Wassermann, transloucando as já frias relações entre pai e filho para questões que envolvem o Poder Judiciário, a pena, o criminoso e as convicções humanas, imbuídas de um tratamento e aprofundamento psicológico incomparáveis.
O processo em si, título da história, acaba sendo um pretexto, assim como a justiça, para imiscuir o humano escrito por Wassermann; dizer descrito seria um erro: mesmo tendo suas características traçadas aos montes, personagens como Etzel e seu pai possuem uma incerteza em suas razões até o fim da obra. Suas convicções e posições são gradualmente derrubadas pelos encontros que vão tendo em decorrência do processo Maurizius. E ninguém, com exceção talvez de Gregor Waremme -- envolvido com o círculo de amizades de Maurizius na época do assassinato pelo qual este acabou sendo julgado e, aparentemente, detentor da chave para a resolução plena do caso jurídico, e que possui o caráter, aparentemente, mais questionável durante o livro, além de seu intelecto e carisma inebriantes; suas opiniões e vivências, narradas em suas conversas com Etzel, mostram-se assombrosas e rendem alguns dos momentos mais aberrantes da obra --, ninguém percebe o que verdadeiramente está ocorrendo por trás do pano de fundo do julgamento de Maurizius e sua absolvição ou o decorrer pleno de sua condenação já julgada.
Por todo o livro, a linha que guia os impulsos humanos e racionais é a justiça; mas limitar toda sua magnitude a apenas isso é demonstrar ter saído incólume de uma leitura tão densa como essa: a linguagem, instrumento primal da literatura, é dura, e não abre brechas para momentos de leveza; não é à toa.
Sob a camada aparente da escrita dura de Wassermann sobre aquela história que ele quer contar, há um tom profético subliminar que ultrapassa as páginas e encontra ecos na comunidade europeia pré-Segunda Guerra Mundial. Está prestes a acontecer algo catastrófico, mas, na obra, isso fica apenas espreitando enquanto na realidade sabemos muito bem como aqueles anos se findaram. Há um espectro indescritível, uma áurea maligna, que habita as páginas sutilmente, mas mesmo assim onipresente, que precede as tragédias que acometeriam a Europa nos anos vindouros, culminando na Segunda Guerra Mundial. É um retrato da decadência da sociedade europeia por conta de sua inação e perda de convicções, todos levados por uma força catastrófica que, apenas no sentimento extraído das palavras e não das informações expostas, é sentida e influente em toda a história de Etzel, do Barão Wolf von Andergast, do filho e do pai Maurizius e de todos os outros personagens, tanto os escritos por Wassermann e feitos da fusão entre tinta e papel quanto os criados por Deus e formados por um amontoado de carne e nervos.
Maurizius, esclarecido de sua pena, ao se defrontar com seu suposto inimigo, o Barão Andergast, homem que o jogou naquela prisão, tem o poder de despertar em Etzel, sem nem ao menos encontrá-lo por uma vez sequer, o ímpeto pela justiça: mas qual a injustiça? Há uma injustiça, primeiramente? E por que teve de ser Etzel, coincidentemente filho do promotor que o condenou àquela pena, a tomar as rédeas da libertação dele, Maurizius? Aparentemente, todos são engendrados em uma trama que os usa sem explicações e, quando percebem, já não podem mais questionar suas emoções e ações por um meio racional, apenas desejam realizá-las, independente dos meios e dos próprios fins; deixam para trás sua humanidade
As questões de O Processo Maurizius são complexas, como deve ter ficado claro neste curto texto; mas não é por conta disso que deve manter distância dela: a escrita de Wassermann encaminha o leitor por uma história muito bem amarrada, mesmo com todos os seus pontos, enquanto perpassa por indagações (e sensações) que apenas são expressas e cabe a quem lê-las o papel de refletir sobre ou apenas abandoná-las; uma impossibilidade, sem dúvidas: é impossível sair incólume e puro da leitura de O Processo Maurizius diante da dimensão de sua profundidade e de sua qualidade. É Grande Literatura, com as iniciais em maiúsculo, e, como todo bom livro, exigirá a atenção do leitor, que, disposto a absorver a arte escrita pelo autor, irá ser abalado pela obra de alguma maneira. Intocado o leitor de Wassermann não sairá; ele não pode sair, o autor não permitirá.